Street Flow

Crítica: Street Flow

Banlieusards. O título original de Street Flow, em francês, é mais adequado para resumir sua ideia central. Pessoa do subúrbio, em sentido pejorativo. Pela mesma razão, esse é o nome da nova tour de Kery James que, além de ser protagonista, roteirista e codiretor do filme com Leyla Sy, é um influente rapper. Com uma lírica marcada por suas raízes africanas, juntamente com fortes denúncias ao racismo estrutural, a truculência policial e a violência urbana, não há como esperar que sua estreia atrás da câmera não seja transbordada por esses temas. Neste sentido, o longa dialoga fortemente com Os Donos da Rua (Boyz n the Hood), que culminou na primeira indicação de um diretor afro-americano ao Oscar.

Assim como a obra de 1991, Street Flow aborda as influências do glamour gangster na vida de um jovem negro suburbano. Uma das grandes diferenças entre as duas produções é que a da Netflix não foca em um grupo de amigos, mas em três irmãos. Noumouké (Bakary Diombera) é o mais novo que, sempre metido em confusões, se espelha no mais velho, Demba (o próprio Kery James), ex-presidiário e traficante de drogas.

Entre os dois, Soulaymaan (Jammeh Diangana) é o irmão do meio, estudante de Direito que possui um forte compasso moral. Como denominador comum do trio, Khadijah (Kani Diarra) é a mãe idosa, marcada pela decepção com o primogênito fora de lei. Por isso, ela que tenta fazer de tudo para que o caçula não seja igual a ele. Sem uma figura paterna, tanto Soulaymaan quanto Demba assumem tal função para Noumouké, colocando o menino em um cabo de guerra de influências opostas.

Contrariamente a Os Donos da Rua, Street Flow possui um espaço temporal bem definido. Sua narrativa se passa durante quinze dias, tempo dado à Soulaymaan para se apresentar em um juri simulado. Nele, o jovem deverá defender, contra Lisa (Chloé Jouannet, Lucky Luke), a tese de que o Estado não é responsável pela atual situação dos subúrbios. O roteiro de Kery James acerta ao colocar o jovem negro para defender tudo no qual ele não acredita, enquanto sua opositora — a típica loira de olhos azuis da burguesia francesa — deve defender o assistencialismo estatal, gerando um forte e irônico contraste.

Street Flow

Ainda sobre o tribunal, James também ousa ao colocar a argumentação de Soulaymaan em forma de rima. Não só uma escolha metalinguística — uma vez que o personagem replica a letra de Lettre à la République, canção mais famosa de Kery James — como, dentro da vivência do personagem, faz muito sentido que ele se expresse através do linguajar da rua, rejeitando um formalismo pomposo. Inclusive, tal liberdade poética faz referência a um outro excelente filme sobre racismo, Blindspotting (2018), cujo ápice também se dá por rimas.

Certamente, o clímax da trama reside nessa sequência e se conecta muito bem com seus acontecimentos precedentes. Quando o protagonista defende na corte que um rapaz da periferia se atrasou para o trem por fumar maconha, imediatamente essa frase ganha força pelo contraste com uma cena anterior na qual ele mesmo perde o transporte porque a polícia lhe parou para uma revista na rua. Tudo que fala é uma grande mentira.

Se o diretor não trabalha com muitos planos elaborados ao longo de Street Flow, James dedica todos seus esforços à construção daquele universo periférico. De tal forma, o pequeno cuidado de colocar um casal com um bebê entrando em seu prédio enquanto, ao lado, acontece uma briga entre traficantes, dá toda credibilidade a essa atmosfera. Similarmente, na já mencionada abordagem policial, pessoas passam filmando a cena sem interferirem, além um próprio oficial negro presente que diz ser diferente de Soulaymaan. Infelizmente, tudo isso é bem comum no mundo real.

Embora os três protagonistas pareçam, inicialmente, figuras unidimensionais, o roteiro desenvolve suas personalidades de maneira complexa. Assim, os irmãos mais velhos estão longe de apenas representarem o “bem” e “mal”, nos quais Noumouké deve optar por qual seguir. Demba, apesar do envolvimento com a ilicitude, possui seu código de ética, não despejando famílias com crianças e relutando em matar alguém. Soulaymaan, ainda que boa parte do tempo seja um “bom samaritano”, possui dificuldades para deixar alguém entrar em sua vida. Já o ator mirim Bakary Diombera, com seu olhar melancólico, traz uma comoção ao caçula que, mesmo tomando atitudes erradas, é genuinamente inocente e perdido na vida.

Street Flow é uma história que, mesmo com uma certa obviedade em sua mensagem moralista (assim como Os Donos da Rua), compensa justamente pela catarse na forma como a exterioriza. No fundo, todo o desenrolar de seus acontecimentos é uma construção lenta e gradual que aumenta o impacto desta expiação na cena do tribunal. Aliás, não há apenas um apontar de dedos contra o caminho da ilicitude. É mais do que isso, com uma profunda denúncia a toda estrutura social e racista que culmina na entrada os jovens negros periféricos nesse mundo. Como diz o diretor Kery James em sua canção Lettre À La République: “Toda chegada tem seu ponto de partida”.

Direção: Kery James, Leila Sy
Elenco: Kery James, Bakary Diombera, Jammeh, Diangana, Chloé Jouannet, Kani Diarra

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