Crítica: O Formidável

O Formidável não é uma biografia “classicona” do cineasta francês Jean-Luc Godard. Talvez por esse motivo o filme consiga dar conta da personalidade de uma das figuras mais cultuadas da história do cinema, tal qual exemplares recentes do nicho como Steve Jobs ou Jackie. O mais recente trabalho do vencedor do Oscar Michel Hazanavicius (O Artista) vai na contramão do óbvio e daquilo que muitas vezes o próprio cinema não consegue dar conta, toda a trajetória de vida do biografado no relato cinematográfico cronologicamente linear. No lugar disso, opta por um fragmento da sua vida e, a partir dele, com determinadas liberdades formais, consegue trazer com clareza para o público as principais questões por trás da personalidade do seu protagonista. Por esse motivo, O Formidável consegue ser tão exitoso em seu intento.

Baseado no livro de autoria da atriz Anne Wiazemsky, O Formidável nos faz acompanhar o momento em que Godard concebe A Chinesa, filme de 1967 do diretor protagonizado pela alemã. Nos sets, Godard se apaixonou por Wiazemsky quando a mesma tinha 17 anos, se casando posteriormente com ela. O Formidável narra a vida do célebre casal até o divórcio. No fim do matrimônio, a temperamento selvagem do grande expoente da nouvelle vague faz com que Anne saia do lugar do encanto dos primeiros anos de casada e entre na fadiga cotidiana da crise e dos conflitos de interesse conjugal.

A maneira como Hazanavicius conta a história de Godard e Anne é bem interessante do ponto de vista da sua forma. O diretor explora recursos como a quebra da quarta parede quando os personagens se reportam para a própria câmera, muitas vezes trazendo um discurso metalinguístico sobre a própria encenação da vida de Godard ou sobre o próprio cinema (há um diálogo curioso sobre o nu nos filmes ou sobre a própria natureza do ator, por exemplo), além de tratar com humor a “ranhetice” de um Godard próximo dos quarenta anos, preservando um espírito revolucionário ainda que seu corpo e sua própria fama representassem algumas barreiras na perseguição desse intento.

O longa é calibrado por uma ótima parceria do casal central. Como Anne Wiazemsky, Stacy Martin revela em gestos discretos a gradual transformação e amadurecimento da atriz diante de um relacionamento que se esfarela entre os dedos, ainda que preserve toda a admiração e o carinho que nutre por seu parceiro. Ao mesmo tempo, O Formidável proporciona a Louis Garrel a oportunidade de exibir um desempenho afiado como Jean-luc Godard, uma performance que, por sinal, evita cair no cacoete da imitação, mas traz camadas psicológicas curiosas ao personagem, sobretudo quando o mesmo entra nas contradições entre seu discurso e seus atos.

A partir da relação de Anne e Godard, Hazanavicius consegue conceber um retrato curioso de uma das figuras mais emblemáticas do cinema mundial no seu enfrentamento com seu próprio ofício, o cinema, mas, sobretudo, com sua verdadeira vocação, a política, fazendo com que, naturalmente sua vida amorosa, sobretudo nesse momento da sua vida, fosse consideravelmente um fiasco. Ao conseguir dar conta da personalidade do seu protagonista de maneira clara, sucinta e também simpática, O Formidável é o típico exemplar que demonstra como há espaço para a inventividade no formato por vezes tão engessado da cinebiografia.

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