Especial: O Legado do Coringa

Algumas figuras são imortalizadas pela cultura, história, política e pelo cinema. A sétima arte tem o poder de eternizar personagens em suas obras. Cinebiografias, por exemplo, surgem com a função de contar essas histórias. A indústria, contudo, vai muito além de narrar fatos reais. Muitos filmes de ficção científica, terror e de super-heróis usam essa premissa para fundamentar suas criações. O cinema percebeu que podia validar a veracidade de criaturas irreais através de suas produções. E é a partir dessa ótica que as produções passaram a colocar figuras controversas sob seus holofotes.

Desde a experimentação feita por Edwin S. Porter, em O Grande Roubo do Trem, de 1903, que o mundo se surpreendeu com o protagonismo que os vilões podem ter. Ao longo dos anos, a fascinação por essas figuras malignas só aumentou e, consequentemente, suas produções também. O universo slasher é a prova viva de que o público é apegado aos vilões. A partir disso, a DC Films, em parceria com a Warner Bros. Pictures, lançou, na última quinta-feira (3), o primeiro longa-metragem solo do arqui-inimigo número 1 do Homem-Morcego. Coringa chegou aos cinemas dividindo opiniões. Confira a nossa crítica clicando aqui!

Mas por que este rebuliço com um novo filme inspirado em quadrinho? O Coringa traz consigo um dilema social e psicológico. A personagem teve, durante seus quase 80 anos de existência, muitos estilos. Hoje é possível avaliar e analisar a essência do palhaço criminoso por meio de suas infinitas versões. Essa pluralidade num só personagem rendeu ao cinema múltiplos Coringas.

De Cesar Romero até Jared Leto, os fãs do Batman já puderam ver facetas distintas do mais temido vilão de Gotham. O bandido comediante de Romero, o gangster vingativo de Jack Nicholson, o psicótico criminoso dublado por Mark Hamill, o sociopata anarquista que rendeu um Oscar póstumo ao Heath Ledger e o estranho psicopata vivido por Leto. Todos representam uma parcela da complexa personagem dos quadrinhos da DC, criado em 1940. Cada um deles tornou evidente para o público que as camadas e os formatos desse vilão podem ser infinitos.

Assim, o espectador já vivenciou várias versões do Coringa. Contudo, nada disso preparou a audiência para ver o que Joaquin Phoenix traria ao encarnar o vilão. É surpreendente a forma como ele construiu a caracterização de sua personagem. Com o lançamento de Joker (título original), o Coisa de Cinéfilo resolveu relembrar todas essas icônicas interpretações que marcaram a TV e o cinema ao longo da existência do Coringa e ilustrar o papel de Phoenix nessa jornada.


Cesar Romero

O ator americano estreou o vilão no audiovisual. Ele começou a interpretar o Coringa na série de TV, Batman, que foi ao ar de 1966 até 1968. Romero estabeleceu no imaginário popular a face risonha e cômica da personagem. Talvez a sua desenvoltura durante o seriado o aproximasse mais, no quesito visual, da criatura que inspirou o seu personagem – a figura risonha e macabra do filme alemão O Homem que Ri (1928). O Coringa de Cesar Romero dinamizou a narrativa seriada com sua presença abobalhada que se fazia necessária para atrapalhar os planos da dupla dinâmica sem nenhum motivo aparente além de sua própria diversão. Assim o primeiro dos Coringas é uma versão vilanesca de um palhaço de circo.


Jack Nicholson

O Coringa vivido por Jack Nicholson trouxe uma roupagem completamente diferente. Dentro de uma perspectiva burtoniana, o ator levou aos cinemas a insanidade da personagem. O público viu pela primeira vez a perspectiva da loucura que o vilão pode ter. Nicholson trazia em seu olhar as alucinações da vingança, sem perder o ar sarcástico e mórbido que pairava no filme. Dessa forma, o segundo Coringa dos cinemas surgiu por uma gangster insano que vivia para se vingar sadisticamente do mundo. Vale ressaltar que a personagem de Nicholson trouxe o primeiro vislumbre da insanidade que hoje é tão característica do Coringa.


Mark Hamill

A experiência de Mark Hamill como o arqui-inimigo do Homem-Morcego, marcou uma geração. O ator dublou a personagem por duas décadas para a TV, o cinema e videogames. Sua interpretação do Coringa definiu o caminho que a personagem trilharia daquele momento em diante. Hamill deu ao vilão uma perspectiva muito mais louca e sarcástica do que antes. Ele foi o responsável por criar a associação mental imediata de que o palhaço de Gotham é terrivelmente perigoso por ser imprevisível. A partir dele, não se poderia prever o que o Coringa faria. A loucura se tornou a motivação número um dessa figura.


Heath Ledger

Anos se passaram até que outro ator tivesse a oportunidade de vivenciar esse personagem numa produção. Heath Ledger abraçou o projeto de Christopher Nolan e mergulhou de cabeça no processo de criação. O estudo da personagem levou meses e resultou numa das performances mais marcantes do cinema. Ledger permite que o espectador veja que existe algo além da loucura. Por trás de toda aquela insanidade sempre existiu uma perspectiva. Agora o vilão mostra as suas ideias anárquicas e sociopatas chocando o mundo com a profundidade de cada uma de suas ações. Heath Ledger foi a alma de Batman – O Cavaleiro das Trevas. O ator deu tudo de si para esse papel. A resposta foi a aclamação eterna e diversos prêmios póstumos. Com isso, ele criou a difícil de missão de reencarnar a personagem.


Jared Leto

Oito anos se passaram até que o espectador pudesse rever o Coringa nos cinemas. Desta vez, vivido pelo ator e cantor Jared Leto, o vilão trilhou um caminho oposto ao seu antecessor. A participação de Leto em Esquadrão Suicida foi tão criticada como o filme. Sua versão da personagem tentou dialogar com as possibilidades criadas por Romero, Nicholson e Hamill, mas falhou em sua execução. O resultado visto no longa foi uma espécie de Frankenstein do palhaço. A tentativa de unir a comicidade de Romero, o sarcasmo de Nicholson e a loucura de Hamill resultou numa figura estranha e controversa que apenas assina a declaração de erros da produção.


Joaquin Phoenix

O mais recente Coringa cumpriu com o objetivo de Leto. Joaquin Phoenix mostrou as todas as camadas da personagem que já haviam sido apresentadas anteriormente. A dinâmica de Joker proporcionou um ambiente perfeito para dar vida à mais fiel interpretação dos quadrinhos já feita. A performance de Phoenix extasia o público por sua força. Desde a cena inicial, o espectador se vê à mercê do sadismo da personagem. O filme passa e não há nada o que fazer a não ser apreciar cada momento, cada versão e cada ação do palhaço. Aqui é apresentado o poder do Coringa perante a humanidade. A loucura que seduz, o sarcasmo e a comicidade que divertem e a insanidade que perturba e instaura o caos.

Diante da desenvoltura de Phoenix como o famoso palhaço, não existem palavras que descrevam o impacto da produção. Assim como Ledger, em 2008, Phoenix fez um inesquecível trabalho de interpretação. Todd Philips (Se Beber, Não Case, de 2009) entregou ao público um ultimato. A carta-magna da DC para o público voltar a acreditar em suas produções. A experiência de assistir Coringa é perturbadora e atraente ao mesmo tempo. A produção se mantém em compasso a cada momento, sem deixar nada faltar. A partir desse impacto, Todd entrega um drama existencial contundente, chocante e agressivo. Durante os 120 minutos de filme, o espectador é lembrado da podridão que existe no mundo. Gotham City finalmente foi representada como merece. Todo o caos e a sujeira constroem, ao lado da performance de Phoenix, a crítica perfeita sobre o verdadeiro ser corrompido.