Crítica (XIII Panorama): As Boas Maneiras

O terror não pode ser confinado ao show de atrações do cinema dos sustos e violência gráfica adolescente, ainda que não haja problema algum quando ele ocasionalmente se restrinja a isso. Quando consciente da sua potência simbólica, o gênero e suas histórias flertam com o fantástico para explorar problemas sociais ou se debruçar sobre a psicologia fragilizada dos seus protagonistas num exercício de estudo de personagem, mergulhando sua narrativa na zona perigosa dos medos humanos.

Desde Trabalhar Cansa, Marco Dutra e Juliana Rojas intentam esse tipo de comunicação com o público através das suas histórias. Com As Boas Maneiras, a dupla de cineastas encontra uma forma de compor um inspirado conto de horror sobre lendas brasileiras que em alguns momentos flerta com a fábula – e até mesmo com o musical – para costurar a história de uma natureza reprimida que gradualmente dá sinais da necessidade de externar seus instintos. A ideia central é que nenhum sujeito consegue viver muito tempo lutando contra suas vontades por receio dos estragos que as mesmas possam fazer na sociedade que o cerca. Ao mesmo tempo, As Boas Maneiras quer abordar a maternidade biológica e adotiva e como os vínculos criados com o ser que está sendo gestado no corpo de uma de suas personagens é estabelecido de diferentes maneiras por suas protagonistas.

No filme, Ana, personagem de Marjorie Estiano, está prestes a dar a luz ao seu primeiro filho e para isso conta com a ajuda de Clara, a ótima Isabél Zuaa. Ana contrata Clara para ser sua empregada após uma exaustiva rodada de entrevistas com diversas candidatas. A relação entre as duas fica cada vez mais próxima e Clara começa a perceber que a gravidez de Ana não é uma gestação como outra qualquer, sobretudo quando a patroa passa a apresentar estranhos sinais, como sonambulismo e, consequentemente, outros atos bizarros sob a luz da lua cheia. Os laços entre Ana e Clara ficam ainda mais fortes quando a primeira dá luz à criança e sua cuidadora se depara com uma importante decisão a ser tomada.

O centro da narrativa de Dutra e Rojas é, até certo ponto, a dinâmica entre Ana e Clara, suas personalidades distintas, mas também complementares. A faísca entre as personagens fica por conta dos desempenhos inspirados da dupla de atrizes Marjorie Estiano e Isabél Zuaa. Como Ana, Estiano explora a inconsequência e a falta de rumo de uma mulher que de repente se vê tendo que administrar uma gravidez inesperada e indesejada por sua família. Lidando com a frustração do seu destino e não sabendo administrá-lo, Ana encontra suporte em Clara, vivida com fibra, mas também ternura adquirida por uma fenomenal Isabél Zuaa, que brilha na tela, sobretudo quando assume a maternidade adotiva no segundo momento da história. Mais do que isso prometo não contar para não estragar as surpresas.

O roteiro de Rojas e Dutra traça um percurso fluido para seu conto de horror que apesar de estender-se um pouco no terceiro ato desenvolve toda uma cadeia de acontecimentos capaz de manter o espectador grudado na tela, envolvido com as personagens que preenchem As Boas Maneiras de afeto. Mesmo os momentos mais graficamente violentos da trama não são marcados pelo vazio dos gratuitos litros de sangue, mas por uma relevância dentro do universo da história contada e são alternados por circunstâncias que fortalecem a relação de Ana e Clara com o bebê, tornando o espectador cúmplice de sentimentos que ganham complexidade e âncoras muito bem construídas.  Ao mesmo tempo, o olhar da dupla de realizadores para os eventos narrados é sofisticado do ponto de vista estético, com uma atenção aos elementos que compõem os quadros como objetos cênicos e a paleta de cores adotada, mas também evitando que isso se sobreponha ao evidente enfoque narrativo do filme.

Ao mesmo tempo em que fornece ao espectador uma história marcada por simbologias, As Boas Maneiras pode ser vivenciado como uma narrativa destacada do terreno semiológico com suas relações e personagens que funcionam por afetos bem estabelecidos no universo proposto na tela. Para além dos elementos soturnos que transformam As Boas Maneiras num conto urbano com traços tipicamente barasileiros (e nesse sentido a ambiência da história no São João e no universo rural  foram certeiros), a jornada de Clara é humana pelos conflitos que a mesma vivencia ao se afeiçoar de maneira tão visceral pelas personagens que conhece ao longo da história. Independente do olhar que se tenha para o filme, As Boas Maneiras deixa ótimas impressões no espectador pelo esmero com que sua narrativa é lapidada por seus realizadores e pela qualidade do desempenho dos seus atores, especialmente Isabél Zuaa, o coração desse filme.

Filme assistido no XIII Panorama Internacional Coisa de Cinema. Para mais informações sobre a programação do evento que vai até dia 15 de novembro, clique aqui. 

Assista ao trailer do filme: