Retratos Fantasmas

Crítica: Retratos Fantasmas

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Passado e presente se encontram, para pensar sobre um futuro. Ou múltiplos futuros, daqueles fantasmagóricos, porque são permeados de lembranças, questionamentos, sentimentos, camadas de certezas, mescladas com dúvidas. Há o viver, o recordar e o amor por nossas trajetórias, por aqueles que nos cercam ou nos cercaram. O velho e o novo, juntos, em 1h33min de projeção.

E tudo começa de dentro para fora, do particular para o plural. E talvez seja por isso que Retratos Fantasmas, novo longa-metragem de Kleber Mendonça Filho (Aquarius), consiga alcançar tantas pessoas, de gerações diversas, de países distintos, por esta gama múltipla de mensagens, internas e externas. Além disso, o documentário de KMF tem, para além de toda e qualquer técnica –  mesmo que ela aqui seja refinada e ainda chegaremos lá –, é permeado de emoção.

É por este motivo que este texto divaga. Geralmente, eu começo fazendo um grande resumão do que penso sobre um filme. Mania de jornalista, que ama criar um lide? Pode ser. Todavia, Retratos pede outra coisa. O filme clama pelo profundo, por uma investigação da alma, pela reverberação do mundo para cada vida, cada indivíduo que habita o planeta Terra. No doc de KMF, isto é feito, claro, através do amor pelo cinema. Quem é cinéfilo, com certeza irá sentir múltiplas emoções passando pelo rosto, durante a exibição.

Sobretudo aqueles que, assim como eu, são apaixonados pelos centros das cidades. Kleber tem razão, o centro guarda consigo algo de especial. Memória e história. Um tudo que poderia ter sido, que foi, que não já é mais, que a gente quer agarrar com toda força, mas se esvai. Agora, chega de devaneios desta crítica sensível, que já deve ter perdido metade dos leitores a este ponto. Vamos lá, vamos tentar ser mais objetiva.

Para começar – ou recomeçar –, eu uso um frase do próprio KMF, no início da projeção: “Pode parecer que eu estou falando de metodologias, mas eu estou falando de amor”. Note bem esta frase, porque ela norteia toda a sessão. É técnica, mas é amor.E é através da divisão da obra em três partes, que Kleber aproxima o espectador de sua trajetória. Com uma mistura de imagens de seus cotidianos, em épocas distintas, e de seus próprios filmes, iniciamos esta jornada entendendo o universo de quem está contando aquela história.

Com uma fotografia antiga da Boa Viagem, por exemplo, o público vê uma outra Recife, apagada pelo capitalismo, pelos prédios altos, de uma cidade consumida por uma estrutura atualmente segregante. Mas, é de lá que somos levados para a rua da casa de KMF. Um espaço que lhe é tão caro, que foi de sua mãe e que, agora, ele vê os filhos crescerem. Com as suas filmagens, é perceptível o que Kleber deseja passar: há a vida e há o cinema. Neste sentido, montagem, trilha e direção de Retratos Fantasmas dialogam de forma coesa, para a criação de uma narrativa.

Porque, aqui, é necessário apontar que a estrutura de documentário usada no longa poderia não funcionar, como acontece em tantos casos. Cartela, voz off, imagens de arquivo… Muitas vezes, os realizadores se esquecem que têm um filme nas mãos e fazem um trabalho mecânico, uma colagem fria. Retratos é o oposto disso. Existe uma história, existe uma jornada do herói (o próprio Kleber, que talvez odiasse esta frase minha), existe clímax, tensão, reviravoltas e respiros. Existe cinema e consciência narrativa.

Há uma apropriação desse jogo entre o ficcional e o “real” – teoria do espelho não, por favor – que leva quem assiste para esta experiência sensorial, convocada pelo doc, do que foi pensado como ficção e o que é uma tentativa de ilustrar o dia a dia “comum”. Os instantes de construção de ambientação do gênero terror, traço clássico da filmografia de KMF, são claustrofóbicos, seja pela narração, pela escolha da música ou pela própria vida, que é muito mais fantasmagórica do que um espírito que sai de uma televisão.

Retratos Fantasmas

É nesse uso de linguagem cinematográfica e na proximidade com a intimidade, a vida pessoal e profissional de Kleber e a sua visão sobre o mundo, que somos levados a segunda e a terceira parte da obra. A partir daqui, o universal pode ser sentido de maneira mais plural. Em uma reconstrução histórica, sobre a cultura, a sociedade e a política recifense do século XX, é possível notar todo o assombro do que foi feito com a cidade – e com o país.

O uso e desuso dos espaços e a arte mais como um poder do que como uma habilidade são impressos na tela, nesta comparação imagética entre o que foi e o que é. Para fomentar este discurso, elementos visuais são utilizados, como a fusão e os cortes secos entre os diversos tempos mostrados no ecrã. Os distintos tipos de filmagem, incluindo as passagens com câmeras analógicas, de alguma forma fazem com que a imersão se amplifique.

Isso ocorre porque quando nos deparamos com estes registros também nos deparamos com a nossa própria vida. Há o medo: do escuro, dos prédios abandonados, da falta de apoio a cultura, dos milicos, do sistema e da descoberta do uso do cinema para motivos torpes. Estes temores pulsam na tela, com transições de imagens que dão movimento para este sentimento de aprisionamento e ausência de controle sobre o futuro.

Há temor na tela e no espectador, que acompanha cinemas que fecharam e ruas abandonadas, sem investimento, sem entregar estes espaços para quem precisa de moradia, tanto, em cada imagem, que salta no ecrã. Contudo, Retratos Fantasmas tem ternura e paixão transbordantes. Planos de letreiros, de cartazes, de fotografias e obras do passado brasileiros, Tem Katia Mesel, tem Cláudio Assis, tem Seu Alexandre!

Seu Alexandre precisa de um momento somente seu nesta crítica afetuosa e emocionada. Antigo projecionista do Art Palácio, a relação dele com a projeção cinematográfica, e com o próprio Kleber, é o ápice do documentário. Progressivamente, o espectador vai conhecendo o trabalho daquele homem, suas histórias, sua tristeza ao exibir o derradeiro filme no Art e, por fim, a informação de quando ele faleceu. 2002. É tão forte a empatia e o carinho por esta personagem que eu nem precisei anotar o ano que ele partiu, 2002. 

Todas estas sensações e aproximações com o enredo vem deste cuidado em apresentar e costurar bem os fatos. Ainda, pode-se apontar que o desenho e a edição de som são alguns dos pontos altos da produção. As sonoridades guiam os afetos, a cada quadro, a cada mudança de voz nos offs de Kleber, nas subidas e descidas musicais, nos ruídos da cidade e nos silêncios dela.

Retratos Fantasmas é uma obra sobre sentir, sobre deixar as sensações fluírem, mas sem deixar de refletir sobre o que está sendo mostrado. É sobre lamentar também, as perdas das salas de cinema para shoppings, para o abandono ou, pior, para igrejas evangélicas. Ou, ainda, é olhar para o filme e constatar que existem sentimentos que guardamos profundamente, somente para nós, mas que são universais, como a melancolia de olhar ao redor e somente ver farmácias, enfileiradas pelas ruas.

É, é melancólico, é feito de ilustrar um futuro incerto, é cinema que bate fundo, na sua estética, nos seus relatos, nos seus sons, na memória que veio e que fica, nos seus retratos fantasmas, que assombram os nossos corações, porém que acalentam pelo registro, nos blindados com sessões cheias de sorrisos e lágrimas.

Direção: Kleber Mendonça Filho

Assista ao trailer!