Bob Marley - One Love

Crítica: Bob Marley – One Love

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Desde o sucesso comercial e a consagração no Oscar de Bohemian Rhapsody (vencedor do prêmio de melhor ator para Rami Malek, que interpretou Freddie Mercury), a cinebiografia tem sido um gênero cinematográfico responsável por gerar verdadeiros embaraços, em específico quando as figuras representadas nas telas são grandes artistas e esses títulos são produzidos pela própria família. Esses longas contam com o apreço do público pelo legado desses personagens fora da tela (sua obra musical, por exemplo) e “camuflam” narrativas capengas com inserções musicais. Essas produções são incapazes de desenvolver qualquer narrativa consistente, evitando, sobretudo, as polêmicas na vida dos protagonistas dessas histórias, algo essencial para transformar essas figuras em seres humanos passíveis de identificação, princípio básico a qualquer relato em qualquer mídia, mas que na interpretação dos seus produtores/familiares são traços que maculam a imagem dos cinebiografados.

I Wanna Dance With Somebody: A História de Whitney Houston, por exemplo, foi um projeto sabotado por esse tipo de condução trôpega, assim como o já citado Bohemian Rhapsody. Como contra-exemplo, tivemos Elvis e Rocketman (sobre Elton John), que mesmo com a participação de familiares e do próprio biografado (o segundo caso) na produção, conseguiram resultados bem mais eficientes porque em ambos a narrativa cinematográfica esteve em primeiro plano e não o receio de que qualquer abordagem pudesse arranhar a imagem dessas figuras. O resultado de Bob Marley – One Love está mais próximo dos filmes sobre Freddie Mercury e Whitney Houston do que as obras que contaram a vida de Elvis Presley e Elton John.

O longa dirigido por Reinaldo Marcus Green (de King Richard: Criando Campeãs, filme que rendeu o Oscar de Melhor Ator a Will Smith) tenta concentrar suas atenções no processo de gravação e na turnê de Exodus, álbum de maior sucesso da carreira de Bob Marley. Bob Marley – One Love inicia sua narrativa contextualizando historicamente a fase da vida do músico que o longa vai retratar: o conflito político e a divisão interna da população jamaicana acerca de dois grupos disputando o poder. O estado que beirava a guerra civil inquietava Marley. No fim das contas, nenhum desses dois tópicos (a gravação do álbum e o contexto histórico-político) são explorados a contento pelo filme.

A narrativa de Bob Marley – One Love não desenvolve um fio condutor sequer. A criação de Exodus é transformada em uma série de trivias espalhadas de qualquer forma na história em meio a algumas apresentações de Marley nos palcos e algumas brigas totalmente fora de contexto entre o artista e sua esposa ou divergência com sua entourage e seus produtores. No meio de tudo isso, Marley descobre um câncer e Reinaldo Marcus Green lida com flashbacks pontuais sobre a infância e a juventude do músico. Nada é “costurado” pelo roteiro no modo “causa-consequência” e os eventos apenas se sucedem demarcados pela localização geográfica em virtude da turnê do músico.

Bob Marley - One Love

O tópico político introduzido pelo filme é esquecido e só é lembrado momentos antes dos créditos finais quando os realizadores exibem imagens de arquivo de uma apresentação de Marley na Jamaica com as duas representações políticas citadas na obra – ou seja, um dos temas mais promissores do longa é silenciado durante toda a narrativa, apesar de ter sido mencionado logo no início e sugerir uma conexão, nunca elaborada, com Exodus. Só essa discussão sobre a história política da Jamaica atravessada pela obra de Marley seria suficiente para produzir uma cinebiografia mais consistente sobre o músico, dimensionando sua personalidade de maneira mais eficiente do que esse longa aqui faz.

O longa também tem problemas na construção da personalidade de Bob Marley. O ator Kingsley Ben-Adir (ótimo em Uma Noite em Miami… da Regina King) tenta fazer o que pode no filme e se dedica bastante ao papel. É uma pena que o roteiro e a direção desse filme optem por transformar Marley em uma espécie de divindade, ausente de qualquer traço de humanidade e sempre disposto a soltar frases de efeito sobre a paz. O filme opta pelo tratamento do biografado como uma espécie de messias praticamente sem falhas, quando o caminho mais interessante para a obra seria abordar o personagem como um homem com ideais.

No fim das contas, Bob Marley – One Love perde a oportunidade de trazer para as telas uma versão do músico que pudesse se equiparar ao carisma do verdadeiro Marley. Esse esforço de pasteurizar realidades da maioria das cinebiografias de artistas famosos que têm chegado aos cinemas no lugar de beneficiar esses projetos e as imagens públicas dos seus homenageados só prejudicam ambas, resultando em narrativas que deixam o público indiferente a essas personagens e sem o menor dimensionamento do que elas representaram na história. Caso questões mais delicadas não sejam pertinentes ou desejáveis de serem abordadas, o melhor caminho foi aquele traçado pelos já citados Elvis e Rocketman que encontraram na personalidade de suas respectivas direções uma alternativa para contornar algumas dessas questões.

Ao final da sessão de Bob Marley – One Love fica o questionamento: Como pode uma história tão rica quanto a de Bob Marley gerar um filme tão oco e sem vida quanto este? Nem mesmo a música vibrante do artista inspira a sua cinebiografia a emular a energia da sua obra com apresentações musicais inspiradas que poderiam preencher de alguma forma os vazios narrativos dessa história. O futuro do gênero é preocupante e as cinebiografias que estão acenando para o público não aparentam contornar esse problema, pelo contrário, projetos sobre Michael Jackson e Amy Winehouse estão a caminho nos mesmos moldes desse aqui em contextos ainda mais delicados. Como alento, ainda há diretores como Pablo Larraín que seguem apostando em tratamentos mais criativos – a cinebiografia do diretor sobre Maria Callas com Angelina Jolie promete seguir a ótima trilha de Jackie e Spencer.

Direção: Reinaldo Marcus Green

Elenco: Kingsley Ben-Adir, Lashana Lynch, James Norton

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