Crítica: A Garota do Livro

Acredito que uma boa definição para A Garota do Livro seria “perturbador”. Sim, bastante. Mas ainda assim, por mais incômodo que seja o tema tratado, a diretora novata Marya Cohn conseguiu fazer com que as cenas fossem apenas sugestivas, sem expor demais os personagens e, consequentemente, os atores.

Alice é uma jovem assistente de um editor de livros que sempre sonhou em ser escritora. Entre cenas do presente e do passado, o enredo vai nos mostrando alguns monstros que a protagonista tem que enfrentar e como isso influencia na sua rotina e decisões do dia a dia.

Quem faz o papel principal é Emily VanCamp, conhecida por seus trabalhos nas séries Revenge e Everwood, e mais recentemente no filmes do Capitão América. Ela tem um perfil muito bom para papéis dramáticos e casou muito bem com a melancolia da protagonista, toda sua confusão mental e transtornos.

Alice tem que lidar com seu passado ao ser convidada para trabalhar no lançamento do livro de um dos antigos clientes do seu pai, que é um poderoso agente literário de Nova York. Mostrando aos poucos como que seus traumas influenciam na sua conduta, desde a forma como se veste e se arruma, até a maneira como lida com relacionamentos afetivos, o roteiro vai construindo a personagem, enquanto seu passado é desvendado e mostrado aos poucos para o espectador.

A temática da pedofilia é extremamente perigosa e difícil de ser tratada de maneira tão sutil quanto este filme conseguiu. O espectador fica completamente enojado por tudo, mas esse “tudo” é praticamente nada. Para tentar explicar, é um caso de pedofilia e o filme mostra apenas um resvalo de beijo. Todo o resto é induzido, porém tão bem induzido que o nojo é presente em todos os momentos. Até o olhar do antagonista, o toque dele no ombro, já arrepia a gente. E isso se deve a uma excelência do roteiro e direção.

Além disso, é interessante como a narrativa é conduzida, fazendo da protagonista vítima de seu passado, mas também culpada de seu presente. Eles não romantizam as coisas, o que torna tudo muito real. Embora ela seja traumatizada, existem erros que ela comete no presente que pertencem apenas ao presente.

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Aliás, outro destaque do roteiro é a referência clara, porém sutil, ao escritor Lewis Caroll, famoso pela obra Alice no País das Maravilhas. Já foi citado diversas vezes o lado pedófilo de Caroll, embora existam muitas teses sobre o tema, desmentindo ou reforçando. A personagem Alice, do País das Maravilhas, teria sido inspirada na filha de um amigo seu, embora ele negasse sempre. Além disso, ele era um entusiasta da fotografia e tinha acervo de fotos de meninas, algumas sugerindo muita sensualidade e nudez.

No filme, além do nome da personagem ser Alice, o amigo do pai que a abusa é escritor e tem seu livro de sucesso baseado na “relação” que teve com a menina. Para ressaltar ainda mais as referências com Caroll, em uma das cenas do filme, onde o filho de uma amiga de Alice brinca no parquinho, o garoto se pendura em uma estátua de Alice do País das Maravilhas que fica no Central Park, em Nova York.

Mas tudo isso é feito muito sutilmente, o que torna o filme excelente no que diz respeito ao roteiro. Ele consegue mostrar a mudança da personagem, que chega ao final do poço com seus traumas, mas consegue se reerguer. A melhor parte é que, ao final do longa, ela vai perdendo a característica de vítima e assumindo o próprio leme de sua vida.

Um ponto baixo do longa seria quando a protagonista decide criar um blog para recuperar um relacionamento afetivo. Soa muito infantil dada a seriedade do restante da trama, mas pode ser visto como leveza por alguns. Ainda assim, completamente dispensável.

A Garota do Livro nos faz refletir sobre a “normalidade” com que a pedofilia acontece no dia a dia das crianças, sendo muito mais comum do que podemos efetivamente imaginar. Além disso, desconstrói aquele perfil bruto que relaciona a pedofilia ao estupro propriamente dito, mostrando que existem diversas formas de abusar de uma criança ou adolescente e lhes causar trauma, que não envolvam necessariamente a relação sexual. É um filme que fica na cabeça por muito tempo.

O filme estreia nesta quinta-feira, dia 26, no circuito nacional.