XIV Panorama Internacional Coisa de Cinema: Febre da Selva

A febre! Aqui, Spike Lee a explica como a vontade do negro ser branco e vice-versa. Nas suas duas horas e doze de duração, o filme vai tensionar esta questão, sobretudo no que se refere às possibilidades de conflitos e enfrentamentos que podem ser vividos por casais interraciais. A história se passa na década de 1990, mas ela poderia muito bem ser hoje em dia, infelizmente. E Lee consegue escancarar a discussão sobre o racismo, tocando profundamente na ferida, sem aliviar para ninguém.

Na narrativa, o espectador se depara de um lado com Flipper Purify (Wesley Snipes), um arquiteto talentoso, bem sucedido, feliz em se casamento e com uma filha muito amada. Do outro, vê-se Angie Tucci (Anabella Sciorra), uma ítalo-americana que começa a trabalhar como secretaria de Flipper. Quando estes dois mundos se encontram, as estruturas pré-estabelecidas nas vidas das personagens começam a ruir e a discussão passa a fervilhar na película*.

O caminho que o roteiro faz pode causar impacto no espectador, porque Lee sabe construir esta trajetória que chega a remeter, intencionalmente ou não, a elementos da tragédia grega, como a desmesura, o pathos e catarse. Assim, Flip quebra a ordem estabelecida e isso gera consequência na trama, o sofrimento dos envolvidos em sua vida e de Angie é progressivo e existe a purificação das emoções e paixões quando o protagonista repensa suas ações. E é neste contexto que Spike Lee põe todas as crueldades dos racistas e machistas que gostam de ser opressores, como se esta característica fosse deles por direito.

E aí é que está algo que chama atenção sobre Flip. Apesar dele ocupar a posição de quem sofre preconceito dentro do enredo, ele também age como figura opressora  quando o assunto é forma pela qual este enxerga as mulheres, tornando-se um pouco como a figura de seu pai, que possui uma relação tensa com o jovem. Desta forma, Lee consegue retratar bem os graus de abuso presentes na sociedade, quem tem privilégios e quais são eles, as tensões e o imaginário sobre certos arquétipos da sociedade.

Todos estes elementos são aparados por uma fotografia, figurinos e uma direção de arte afinadas. É possível perceber que nas paletas de cores certas situações são estabelecidas. O marrom, o vermelho, o cinza e o azul prevalecem e nesse jogo de cores percebe-se quem está posição de domínio, de poder ou satisfação e quem ocupa o lugar oposto. O espaço que os objetos são posicionados e como eles aparecem na câmera também contribuem para como a história está sendo contada. Um exemplo são os quadrinhos da loja de Paulie (John Turturro), que dão indicações de que ele é um homem branco menos Neandertal do que os outros que o cercam.

A personagem de Turturro, inclusive, é um dos destaques de atuação. Com sutileza, ele demonstra toda a força de um rapaz sensível e tímido, mas que possui gentileza, bondade e vontade de ser melhor. Seus olhares para os colegas de cena são potentes e expressivos, demonstrando sua insatisfação em viver no ambiente que habita. Contudo, se fosse para nomear um ator como “dono” do longa seria Samuel L Jackson. Apesar de sua personagem ser coadjuvante e que os conflitos vividos por ele estão nos arredores do problema central do filme, seu Gator é um papel com muitas camadas. O ator traz doçura, graça, asco, angústia e tristeza em suas aparições na tela.

Febre da Selva é um filme potente e direto, que mostra, com qualidade técnica, a sordidez e covardia humanas, sem filtro e com uma lente de aumento. Este é um dos melhores filmes de Spike Lee e merece ser visto e revisitado.

*O filme foi assistido em película

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