Desaprender a Dormir

Festival Ecrã: Desaprender a Dormir

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Mesclando os sentimentos humanos mais internos e sensíveis versus os externos e carnais, Gustavo Vinagre (Vil, má) traz uma nova produção, que extrapola a sua própria linguagem costumeira. Se tem algo constante em sua obra é o relato. Investigar a figura humana em sua crueza e espontaneidade parece ser o seu desejo como cineasta e seus filmes transmitem justamente isto. Aqui, ele chega ainda mais incisivo nesta estilística, em um longa-metragem rodado na pandemia, dentro de sua casa, aparentemente. Em Desaprender a Dormir, Vinagre também é intérprete e contracena com seu parceiro, Caetano Gotardo (Você nos queima).

Os dois dão vida a um casal, José (Vinagre) e Flávio (Gotardo). A dupla vive um sentimento de anestesia e a relação está desgastada. Para além da dinâmica deles, ainda há uma narrativa, quase paralela, sobre a dificuldade para conseguir dormir – daí o título. Entre relatos de personagens insones, dois homens que fazem vídeos para internet analisando a falta sono de algumas pessoas, a trama deixa uma impressão de que deseja dizer muita coisa. No entanto, apesar de apresentar uma intenção louvável – a de discutir emoções complexas dos seres humanos, suas aflições, vontades intensas escondidas etc –, há uma ausência de habilidade em desenvolver apropriadamente o seu enredo.

Há uma repetição na história, um ciclo vicioso, que não chega em algum lugar específico, senão para o ponto zero. As sequências são semelhantes, o que precisa ser dito é passado logo nos primeiros minutos e resta uma sensação de deja vu no segundo e terceiro atos de Desaprender a Dormir. A ordem das cenas ainda é a mesma, provocando uma previsibilidade, que leva ao tédio. Fomentado por isso, existe um tom evocativo e uma fala confessional que incomoda, não por eles em si, mas pela artificialidade como são proferidos. Abrir-se para a câmera e contar sobre si é uma marca da produção de Vinagre, mas a organicidade se perdeu aqui.

Talvez, seja pela falta de motivação das personagens. As coadjuvantes, que surgem como essas pessoas que procuram ajuda de Hypnus (Carlos Escher) para conseguir dormir, apresentam um corpo cotidiano e demasiado informal , o que pode ter contribuído para esta aparência de improvisação não tão organizada. Os atores estão soltos e demonstram, que não estão tão ambientados com o projeto no geral. Já José e Flávio quase chegam a ter papéis um tanto complexificados. Contudo, assim como o longa, como um todo, eles ficam truncados, nesta espécie de Dia da Marmota, no qual as ações mudam, porém as situações são quase idênticas. Ainda existe uma questão complicada aqui. Quando se aproxima do seu desfecho, a premissa paralela é deixada de lado, não há uma finalização estabelecida para Hypnus e seus consulentes, o que eleva a desconexão entre os dois plots.

Ainda assim, é possível salientar um cuidado de Vinagre e sua pequena (em números) equipe pandêmica em Desaprender a Dormir. A decupagem revela toda a paralisia e o vazio de José e Flávio, bem como detalhes do que desperta o interesse sexual deles. A cumplicidade e entrega dos intérpretes, juntamente com a fotografia de Rafael Rudolf (A Rosa Azul de Novalis), trazem momentos imageticamente significativos para o filme, como na cena de sexo entre José e Nivaldo (Rudolf). Pensando no resultado completo, pode-se dizer que é entendível o que o projeto quer transmitir. Mas, e é difícil dizer isto, talvez, se este fosse um curta-metragem, o seu impacto cresceria, pois algumas recorrências poderiam ser evitadas, deixando o discurso mais direto e efetivo.

Direção: Gustavo Vinagre

Elenco: Gustavo Vinagre, Caetano Gotardo, Rafael Rudolf

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