A sessão de A Boa Esposa já começa com um aviso. Em uma cartela, há aviso contando que alguma mudança intensa acontecerá durante a narrativa. No entanto, não há especificações! As únicas informações precisas que são evocadas são: 1) o maio de 1968 está próximo; 2) ainda existiam as tradicionais escolas francesas, que possuíam o intento de preparar esposas para seus maridos. Assim, o filme mostra de cara qual é a contraposição que ele deseja evocar. Contudo, logo após ao texto inicial, há um mergulho intenso naquele mundo banal, que faz parte de todo primeiro ato, deixando no ar, constantemente, quando a ligação de um ponto com o outro irá acontecer.
Entre as angústias das adolescentes condenadas a um matrimônio sem vontade e os ensinamentos cotidianos sobre o lar e os afazeres domésticos, há uma progressão muito sutil empregada ali. As personalidades de cada personagem é impressa fortemente e menos através dos diálogos e mais a partir das imagens. São nos detalhes que elas são construídas, seja no diretor do local que espia as alunas por um quadro ou na freira que fuma enquanto abre as janelas, a composição destas figuras é bem elaborada. Isto porque seus desejos e percepções são explorados, com alguns textos e com o cuidado da direção na mise-en-scène, que permite que a observação das emoções de todos em cena sejam percebidas.
Além disso, as situações postas no começo de A Boa Esposa soam imutáveis para que, depois, avancem e fique nítida a jornada das personagens. O longa vai transformando cada pessoa dentro do enredo de forma lenta até a sua explosão em seu desfecho. Os absurdos presentes nas falas de Paulette (Juliette Binoche) e Marie-Thérèse (Noémie Lvovsky), por exemplo, vão sendo inundados de bom senso, até que ela e todas as que a cercam rompem com suas amarras. É bem verdade que a produção pode passar uma ideia de que demora a engatar. Esta é uma sensação que ocorre durante a sessão. Mas, após o seu final, o sentido de cada sequência é fomentado, pois é perceptível como o roteiro de Martin Provost (Violette) – também diretor aqui – e Séverine Werba (Cannabis) foi elaborado para que as cenas tivessem dois tipos de momento: o antes do despertar de Paulette e o depois disto. Assim, se ela se sente entediada e violada na cama com o marido, com André (Edouard Baer), o seu antigo amor, tudo é mais leve e iluminado.
Neste sentido, a direção de Provost em A Boa Esposa contribui para ampliar esta transformação da protagonista, de suas vivências e sua realidade. As movimentações de câmera, os enquadramentos, o uso da luz e até a estilística de seu próprio gênero vão mudando, se tornando mais dinâmicos. O ápice desta estratégia está em seu desfecho, quando todo o elenco feminino performa um número musical, no qual elas cantam sobre romper com as amarras misóginas e machistas da sociedade e caminhar para a libertação. Esta é a grande questão da obra, cada instante sufocante vivido pelas personagens, todas as regras proferidas dentro do rígido e conservador estabelecimento de ensino e a estagnação da vida destas mulheres vai se quebrando e esta descoberta de Paulette vem junto com as mudanças políticas francesas. A forma como todos estes elementos são amarrados por Provost e Werba é o grande ganho aqui.
O que poderia ser uma comédia romântica banal – que focasse na redescoberta do amor por Paulette, por exemplo – ou um drama de sessão da tarde – caso o olhar fosse direcionado apenas para os conflitos destas mulheres quase condenadas a uma vida insuportável pela sociedade de seu tempo sem houvesse uma quebra deste aprisionamento –, acaba por ganhar força em sua mescla de abordagens, em sua calma em direcionar as personagens para as suas trocas de pele e na forma como traz a política, mostrando seus efeitos na humanidade de maneira interior e exterior.
Desta maneira, pode-se dizer que A Boa Esposa apresenta um resultado geral coeso. Ainda que demore para revelar até onde irá chegar e qual é o ponto central de seu argumento, em seu desenlace há a recompensa de ter visto jornadas que fazem sentido na trama como um todo, justificando cada posição ocupada por aquelas figuras ficcionais do início ao fim, com uma atenção em não ter pressa para imprimir esta mudança nelas. Para completar, ainda há Binoche, que constrói uma Paulette pudica, tesa e de musculatura enrijecida, até o seu relaxamento total, no qual ela dança, com as expressões faciais leves e um olhar de quem desafia o mundo, gerando uma empatia com a sua Paulette e ampliando o que a obra desejar passar.
Por todo este conjunto, resta esta impressão de que há um chamado forte neste filme. Um grito musicado para quem assiste, para que cada um se mexa, se levante e perceba que não há nenhuma posição ocupada que não possa ser ressignificada. Sempre existe tempo de despertar e tentar quebrar com as estruturas hegemônicas de poder. Ainda que seja sabido que a luta é mais complexa e complicada para alguns grupos e que esta obra soe destinada a uma parte muito específica do público – mulheres brancas –, o convite para fazer ruir o patriarcado branco pode ser sentido por todes.
Há contradições aqui? Como a direção ser de um homem, por exemplo? Sim. Contudo, esta discussão é larga e o que cabe dizer nesta crítica – que já se alongou mais do que deveria – é que A Boa Esposa tem uma coerência técnica e uma potência discursiva, que pode mexer com o espectador e fazer as quase 2 horas de exibição valerem.
Direção: Martin Provost
Elenco: Juliette Binoche, Noémie Lvovsky, Yolande Moreau
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