O Coringa é um personagem controverso que atrai a atenção do público há décadas nos cinemas. Tivemos a versão pastelão de Cesar Romero em Batman (1968), a incrível adaptação de Jack Nicholson em 1989, o visceral e imortal Heath Ledger no premiado Batman – O Cavaleiro das Trevas (2008) e até mesmo a esquecível versão de Jared Leto em Esquadrão Suicida (2016). Seja como for, Joaquin Phoenix (Ela) chegou trazendo grande expectativa para os fãs e apreciadores dos quadrinhos.
Como eu já comentei aqui algumas vezes, filmes que criam muita expectativa me preocupam, já que a chance de decepção é maior. Quando se trata de um personagem que por si só gera ansiedade, a situação fica ainda mais complicada. No entanto, afirmo sem medo que este é um dos melhores filmes dos últimos anos, não apenas no quesito de adaptação de HQs.
Para começar, os quadrinhos são apenas um pano de fundo para trazer uma história complexa e realista sobre a jornada de um cidadão doente abandonado pela sociedade da barbárie. Gotham City está sitiada por manifestações contra o governo. A taxa de desemprego é absurda, o lixo se amontoa nas ruas e os poderosos zombam da pobreza, como se ela fosse uma escolha. Em meio a isso, as pessoas vão se tornando cada vez mais amargas e incrédulas de um futuro melhor.
Arthur Fleck tem problemas mentais diagnosticados e trabalha como palhaço. A dualidade já começa aí, quando uma pessoa triste tem que colocar a máscara da alegria para fazer os outros rirem, sufocando todas as suas emoções. A frase que surge em dado momento, “o problema da doença mental é que as pessoas querem que você aja como se não a tivesse”, deixa muito claro que a sociedade pouco se importa com o que ele está passando. E isso se repente em muitos momentos.
A medida que o protagonista vai sofrendo repetidas investidas negativas do cenário e criando camadas de rancor, o espectador começa a entender o que levou o Coringa a se tornar alguém ruim e amargurado. Temos até lapsos de empatia, que rapidamente se dissolvem. É a sociedade do abandono para alguém que só queria se sentir minimamente importante e notado. Somos apresentados às confusões mentais do Coringa, que nos trazem questionamentos sobre a veracidade de certos fatos que estamos vendo.
Além disso, a cuidadosa inserção do personagem de Bruce Wayne é ainda mais gloriosa. Importante e contundente, mas passageira como deveria ser. O foco ali não é no Batman, definitivamente. Mas nos leva a questionamentos sobre uma possível interseção deste Coringa com o Batman de Robert Pattinson (Bom Comportamento), que deve chegar aos cinemas em 2021.
A grandeza do personagem é respeitada desde a sua construção inicial. A primeira cena do filme já vale a magnífica atuação de Phoenix no filme inteiro. E sim, sinto cheiro de Oscar para o papel, o que será muito merecido. Ele está incorporado no Coringa, de corpo e alma. Todas as angústias, frustrações e desesperos traduzidos em olhares e mudanças de expressão. É uma performance intensa, profunda e sem exageros. Ele consegue deixar o espectador sem ar, mas não beira o caricato. O que só prova a sua magnitude.
Além disso, o filme não tem grandes coadjuvantes. E não digo isso sobre as atuações dos demais. Temos Robert De Niro, por exemplo, que está ótimo, como sempre. Mas o filme não é sobre os coadjuvantes. Eles só estão ali para dar ainda mais espaço para o protagonista. E levar um filme inteiro praticamente sozinho não é tarefa para qualquer ator. Mas Phoenix já havia feito isso em Ela e repete o padrão aqui, com ainda mais complexidade e intensidade.
É curioso pensar que o diretor Todd Phillips, que tem filmes como Se Beber, Não Case e Cães de Guerra como principais na filmografia, conseguiria nos apresentar um trabalho tão aparado e sem arestas como esse. Coringa é um filme lapidado, sem excessos ou faltas. Todos os pontos são preenchidos e com muita maestria. Ele conta ainda com a produção de Bradley Cooper (Nasce Uma Estrela), que tem cada vez mais se filiado a projetos grandiosos.
E na finalização, o filme foi ainda mais assertivo. O cuidado de deixar claro que o Coringa não é um herói, embora a sociedade o coloque neste lugar. Ele é um reflexo personificado das doenças e mazelas daquelas pessoas abandonadas pelo apoio político. Ele é a unicidade de tantos sentimentos ruins e, por isso, não deve ser entendido como herói. O Coringa é a sombra do que somos de pior como humanos. E o filme não se poda ao nos mostrar isso.
Para quem já gosta das versões anteriores do Coringa, com destaque especial ao de Nicholson e Ledger, é surpreendente como nem lembramos deles ao assistir o de Phoenix. É como se fosse a evolução casada e perfeita dos dois, que chegou ao ápice agora.
Coringa é um filme que vai muito além de uma banal adaptação de quadrinhos. É uma produção que insere sub-textos de política, discussões sociais e doenças mentais. Tudo isso orquestrado por uma trilha sonora poderosa e calculista, que sabe exatamente onde se mostrar e onde dar a vez da atuação crua. Uma produção fascinante e memorável!
Direção: Todd Phillips
Elenco: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances Conroy, Brett Cullen, Shea Whigham, Bill Camp, Douglas Hodge, Glenn Fleshler,
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