Vencedor do prêmio de melhor filme na mostra paralela Un Certain Regard do último Festival de Cannes, A Vida Invisível foi escolhido como o representante brasileiro a disputar uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro no ano que vem. O filme tem como “competidor” a entusiasmada recepção de Bacurau, longa de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles que se transformou em um verdadeiro fenômeno cultural no país, cuja crítica social apresenta uma urgência que dialoga de maneira intensa com o momento político que vivemos.
Bacurau teve como oponente o conservadorismo da sociedade brasileira dos nossos tempos, assim como todo pensamento ou expressão inclinada ao progressismo. A Vida Invisível de Karim Aïnouz (Madame Satã), também tem um componente que enfrenta as esferas conservadoras com sua perspectiva sobre a trajetória feminina em uma sociedade patriarcal, contudo, é um filme que pode ser lido superficialmente na sua narrativa sobre duas irmãs, flertando com chaves de comunicação não tão bem aceitas por fãs da vanguarda, um nicho cinematográfico taxado comumente de cafona e pejorativamente como filme para mulher, o melodrama. Ambos tem suas próprias batalhas a travar. Ambos são obras importantes do nosso cinema contemporâneo que chegam às salas de exibição com uma ótima recepção internacional, num momento no qual a importância da arte é diminuída.
O filme de Aïnouz tem uma poética e se apoia em detalhes que o transformam em uma obra de grande apelo emocional, esmero estético e clínica no olhar que tem a oferecer sobre estruturas sociais viciosas e nocivas que silenciam “minorias”. A Vida Invisível é uma adaptação de um romance de Martha Batalha e conta a história de duas irmãs que são afastadas por uma sociedade opressora. Enquanto Eurídice desiste do sonho de estudar piano em Viena para se casar e ter uma vida protocolar como dona de casa, Guida se aventura em um romance com um grego, é renegada pelo próprio pai, abandonada pelo homem que ama e tem que se virar como pode para sustentar um filho. Cada uma passa parte da sua vida imaginando a jornada de grandes feitos da outra, quando na verdade ambas têm destinos muito parecidos de silenciamento e invisibilidade dos seus próprios desejos.
Em A Vida Invisível, Aïnouz se apropria do melodrama com uma eloquência que poucos cineastas conseguem ter, realizando uma história tecida pela narrativa das cartas trocadas pelas irmãs Gusmão e as desventuras de uma trama de folhetim. Usando um gênero ocasionalmente associado ao conservadorismo em seus olhares para as relações entre homem e mulher em sociedades heteronormativas, Aïnouz faz sua singela e pontual narrativa sobre um feminino. Enfatizando sua crítica ao lugar relegado às mulheres por uma estrutura social, sem soar panfletário e superficial em sua análise, Aïnouz observa a perpetuação de costumes familiares que não favorecem um bem-estar social ao contrário do que alardeiam seus defensores.
Tanto Eurídice quanto Guida são figuras que não conseguem dar vazão a todo o potencial humano que apresentam dentro de si, abrindo mão de carreiras, afetos e das suas próprias existências por um ilusório projeto de sociedade que tolhe suas respectivas espontaneidades. Guida amadurece no sofrimento e torna-se uma figura marginalizada depois de ser rejeitada pela família. Eurídice, por sua vez, é castrada por um matrimônio abusivo, entrando em grande melancolia e reproduzindo na educação da sua filha todo um senso de subalternização feminina que fora dominante no seu convívio familiar.
Aïnouz narra essa história de intensas emoções e ressentimentos pessoais com uma poesia bucólica que reverbera na maneira como registra a década de 1950. A atmosfera de folhetim faz bem ao drama e a construção de suas personagens, conseguindo sublinhar a simplicidade de sua narrativa, a intensidade de sentimentos em voga e uma história que se torna mais rica nos detalhes da direção apurada do cineasta. Carol Duarte e Julia Stockler têm ótimas interpretações na pele das duas protagonistas, Fernanda Montenegro está soberba no ato final da história com um plano fechado que somente uma atriz da sua magnitude conseguiria executar com tamanha complexidade e Gregório Duvivier (O Homem do Futuro) é um ponto alto do elenco, interpretando o patético esposo de Eurídice, uma figura que incomodo por seu ar retrógrado, inconveniente, presunçoso e sem noção. A interpretação de Duvivier é um ponto alto do filme, já que ele evita a redundância da composição cartunesca e transforma Antenor na representação de um mal social que é nocivo por seu aparente caráter inofensivo.
Karim Aïnouz se caracterizou por ser um cineasta que compreende o tom que seus protagonistas demandam às suas histórias, basta comparar, a título de exemplo como o diretor interpreta as distintas demandas de longas como Madame Satã e Praia do Futuro. A Vida Invisível é um filme pautado pela observação e pela inquietação que causa a violência inofensiva exercida no cotidiano sem a menor aparência de monstruosidade. É um filme que utiliza o melodrama para criticar aspectos estruturais da sociedade, alguns dos seus costumes mais nocivos.
Direção: Karim Aïnouz
Elenco: Carol Duarte, Julia Stockler, Gregório Duvivier, Fernanda Montenegro, Marcio Vito, Flávia Gusmão, Maria Manoella, Bárbara Santos
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