365 Dni

Crítica: 365 Dni (Netflix)

Sejamos honestos, um filme como 365 dni foi feito pensando no interesse do público pelas suas cenas de sexo e não tem como nos espantarmos com o seu sucesso dada a promoção toda que foi feita em torno delas. O longa apresentou isso como seu carro-chefe em sua campanha de marketing (o “novo” e mais realista Cinquenta Tons de Cinza, diziam).

Na sua primeira semana disponível na Netflix, 365 dni se tornou um dos títulos mais “streamados” da plataforma, ocupando por diversas vezes a primeira posição entre os produtos mais vistos do site. Há que se ponderar, no entanto, que por trás de toda a desculpa do “aqui o que menos importa é a trama”, 365 dni constrói toda a sua encenação erótica alicerçado em uma história – pobre, é verdade, mas existe um trabalho de construção de narrativa ali- e como produto cultural todo esse background que contextualiza suas cenas de sexo reverbera de alguma forma na sociedade, sobretudo quando o filme se transforma em um verdadeiro fenômeno popular como já é.

A produção polonesa tem todos os elementos típicos dos tradicionais romances de banca de revista: a história de um casal (heterossexual) cheia de momentos tórridos com um pano de fundo na maior parte das vezes mal elaborado – vale lembrar que Cinquenta Tons de Cinza, um dos maiores sucessos editorais dos últimos anos também se valeu de todos esses elementos e foi para as telonas com relativo êxito, sobretudo o seu primeiro filme. Na trama de 365 dni, baseada no livro de Blanka Lipinska, Laura é uma empresária bem-sucedida insatisfeita com seu relacionamento amoroso e, sobretudo, com a pasmaceira que é sua vida sexual. É nesse momento que a protagonista da história conhece Massimo, um herdeiro bonitão da máfia italiana que fica obcecado pela moça, a sequestra e impõe a ela o prazo de um ano para se apaixonar por ele.

365 Dni

O principal problema de 365 dni é dos mais óbvios. A maneira distorcida como lê os atos de violência, castração e machismo de Massimo. Tudo é sublinhado pelo filme como demonstração de amor do galã a Laura, tratada como objeto a ser conquistado pelo italiano. E o filme tenta abafar esse tipo de visão com mecanismos narrativos que, por sua vez, são comumente utilizados na sociedade para fazer com mulheres não percebam os danos que a manutenção de relacionamentos abusivos podem lhes causar a longo prazo. Mesmo que 365 dni negue, Laura é claramente vítima de uma síndrome de Estocolmo e Massimo tenta contornar a toxicidade do seu comportamento com a “amada” com a justificativa de que está se reeducando, contendo o seu instinto violento, ou seja, se esforçando para ser um homem melhor para ela e por ela. O sacrifício aqui, é da parte dele, que está controlando a sua verdadeira natureza.

Em 365 dni, qualquer deslize no processo de readaptação de Massimo em prol de um relacionamento mais saudável é justificado com a máxima de que tudo o que esse personagem faz é para proteger Laura. Esse tipo de distorção da realidade – afinal, no “frigir dos ovos”, Massimo continua sendo um sequestrador e não suaviza em nada seu comportamento violento e controlador até o desfecho do longa- é um caminho que de regra é bastante perigoso e costuma manter muitas mulheres em relações que em nada lhes são positivas. E essa confusão entre proteção e controle não é “privilégio” de 365 dni, que é resultado de um olhar anacrônico e nocivo para as relações entre homens e mulheres.

Até o final do filme, Laura parece crer – e o longa assume essa leitura problemática da personagem para si – que Massimo está mudando por ela. Em vários momentos, a personagem aparenta estar segura de ficar no controle de alguma situação, como quando provoca excitação em Massimo no chuveiro para em seguida deixá-lo a ver navios, quando toma banho em uma fonte pública contrariando suas orientações ou quando o faz perder a paciência em uma excessiva ida às compras. Isso tudo são expediente que fazem o espectador ter a falsa sensação de que Laura está de alguma forma virando a mesa e estabelecendo as regras do jogo quando na verdade nada mudou na história. A mocinha segue em cativeiro, prisioneira de um sujeito extremamente possessivo e controlador que estabelece e lhe impõe todo um manual comportamental sobre como ela deve proceder por um ano. Um ano da vida de Laura está entregue nas mãos de Massimo.

Não há elemento na trajetória do “garanhão italiano” de 365 dni que revele qualquer traço de transformação na sua maneira de perceber o mundo e as mulheres. Nem mesmo seus supostos sentimentos por Laura podem ser interpretados como sinal de redenção, tendo em vista que até mesmo esta relação é sintoma do egocentrismo do sujeito. Quer dizer que ele só se dá ao direito de demonstrar alguma sensibilidade – se é que mostra – para ela? De maneira geral, até o final do filme, Massimo continua tendo rompantes de violência não apenas com Laura, mas com todos a sua volta.

365 Dni

Pessoas podem se redimir dos seus erros e verdadeiramente se reeducar. Não acreditar em mudanças nesse nível faria qualquer ação afirmativa de direitos em vão, afinal qual o sentido lutar por determinadas causas se não a própria transformação da sociedade? Não faria muito sentido reivindicar certos tópicos se não acreditamos em mudanças de mentalidade, mas elas precisam ser demonstradas de fato em uma trajetória individual ou coletiva e não serem da boca para fora como acontece no filme, por exemplo.

O grande problema de 365 dni é assumir esse ponto de vista que romantiza e idealiza uma figura como Massimo, colocando toda aquela situação de limitação da liberdade feminina como um fetiche amoroso, o apelo sexual da figura do bandido italiano que se redimiu por amor. Essa lógica de se perceber um relacionamento amoroso é dispensável e é reflexo da própria distorção da realidade que do outro lado da tela muitas mulheres vivem em circunstâncias menos glamourosas que as de 365 dni.

Nesse sentido, 365 dni é tributário de toda uma lógica que fazia a engrenagem do relacionamento de Anastasia Steele e Christian Grey “funcionar” na trilogia Cinquenta Tons de Cinza. Grey se apresenta inicialmente como um dominador incorrigível que ao longo de três filmes supostamente se transformava na sua relação com Anastasia. Cinquenta Tons de Cinza usava o mesmo estratagema de 365 dni para amortecer a péssima impressão que os contínuos atos de controle de Grey sobre os passos de Anastasia poderiam ter com o público a partir de momentos pontuais nos quais ela acreditava piamente que tinha algum controle sobre aquele homem. “Miga, ele não vai mudar por você”. No final das contas, até o último momento, Grey usou todo o seu dinheiro para controlar absolutamente todos os passos e isso era até propício para salvar Anastasia das garras de gente bastante perigosa. No final das contas, aqui, se confirmava a teoria de que todas as neuroses e obsessões desse homem pelos passos de Anastasia serviram para protegê-la.

Todo esse arco romantizado do brucutu redimido encontra origem ainda mais longínqua no clássico infantil A Bela e a Fera da Disney de 1991, revisitado em uma versão em live action em 2017. Nele, a inteligente Bela amolecia o coração de pedra do monstro que a aprisionava em seu castelo, se tornando ao final dessa jornada um príncipe de fato e não apenas aparente como era antes do feitiço que o transformara em besta. A questão é que, por mais problematização que A Bela e a Fera mereça ganhar, ali, a redenção dessa figura masculina é construída por elementos da história. Há um arco dramático para a Fera que demonstra uma redenção. Ainda monstro, a Fera é capaz de atos de generosidade e empatia reais não apenas com Bela, que é libertada no terceiro ato da história, mas com todos os empregados do castelo.

Cinquenta Tons de Cinza

Esse processo de transformação é concretizado no conto infantil. Em Cinquenta Tons de Cinza e 365 dni, as protagonistas da história e o público são “enroladas” pelos apelos eróticos dos seus respectivos personagens masculinos. No fundo, nada muda muito na dinâmica extremamente submissa que esses homens estabelecem com Anastasia e Laura, há apenas uma aparência de que elas em algum momento da história tem algum controle sobre eles.

Para além desses problemas de ponto de vista sobre as relações amorosas, 365 dni é um filme completamente desleixado em outros aspectos. A história de Laura e Massimo é construída de maneira vaga e elementos e personagens são apresentados ao espectador com uma pretensa importância que jamais se concretiza, o que nos leva a confirmar que o interesse de fato na produção está nas cenas de sexo e pouco importa a trama que lhe serve de pano de fundo. Acontece que nem mesmo na encenação das suas cenas de sexo 365 dni é um filme eficiente já que a sua dupla de atores interpreta tudo da maneira mais over possível na maioria das vezes.

É complicado aceitar que em tempos nos quais se fala tanto em relacionamento abusivo, feminicídio e machismo, filmes como 365 dni e Cinquenta Tons de Cinza não conseguem trazer para o público um romance erótico sem cair em esquemas tão arcaicos de representação de relacionamentos amorosos.O que inspira a paixão em mulheres como Laura e Anastasia é suas respectivas vocações para pedagogas sentimental e sexual, acreditando piamente que conseguiram converter verdadeiros brucutus em gentleman, uma realidade ilusória já que, na verdade, a gente termina as jornadas dessas heroínas não acreditando muito na redenção de sujeitos tão controladores e possessivos quanto Christian Grey e agora Massimo. O duro é que certamente virão continuações que possivelmente em nada irão redimir os passos mal dados desse filme.

Direção: Barbara Bialowas, Tomasz Mandes
Elenco: Michele Morrone, Anna-Maria Sieklucka, Grazyna Szapolowska

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