Com o aparente objetivo de discutir o uso do crack na cidade de São Paulo, mais especificamente sobre a Cracolândia, local da cidade onde o uso da droga é feito de maneira intensa e aberta. Há aqui uma suposta intenção de escutar múltiplas fontes, com pontos de vistas convergentes e divergentes. Existe uma postura dentro do documentário de que algo importante está sendo feito ali: a evocação de uma discussão plural e múltipla. No entanto, ainda que a quantidade de pessoas ouvidas seja grande e que, em alguma medida, elas tragam alguns pensamentos distintos, o documentário, claramente, deixa o seu posicionamento marcado, deixando um clima de que há uma necessidade urgente de uma ação que extermine aquele ambiente e como o país não está preparado ainda para medidas menos incisivas, que saiam da lógica de extermínio.
Não há dúvidas de que a produção deseja passar o seu engasgo com a existência da Cracolândia, como enxergam os habitantes daquele local como um estorvo para sociedade e que consideram necessária esta intervenção mais forte do Estado. Esta visão é fomentada constantemente pela figura do cientista político Heni Ozi Cukier. Há uma atmosfera de heroísmo atribuído a ele, como se ele soubesse mais do que ninguém sobre a temática, pudesse elucidar todas as dúvidas do assunto e resolver tudo o que é posto como conflito dentro do enredo. Além de ser entrevistado e estar durante diversas passagens do longa, Cukier roteirizou o filme. Este ponto faz com que a certeza sobre o parcialidade da produção seja fomentada. Não que isso pudesse ser necessariamente uma questão. É impossível que existe um conteúdo feito por humanos desprovido de subjetividade. Porém, existe uma proposta, que já é posta desde o princípio da exibição, que é, justamente, a de buscar uma imparcialidade e de que polarizações e falas deterministas não levariam a lugar algum. Não existe esta procura e o conteúdo acaba sendo um tanto desonesto em seus objetivos e na manipulação das imagens e sons para realizar a sua argumentação.
Ainda que médicos, líderes, agentes de justiça e de saúde, que vão de São Paulo até os Estados Unidos, Canadá e Suíça, sejam trazidos, no final das contas o veredito já está dado! Esta percepção chega muito através da observação dos recursos técnicos como potencialização das sentenças deterministas. A montagem, a trilha e a edição de som são os principais elementos que contribuem para tais efeitos. Os cortes, com sobe som de músicas que instalam tensão, revelam quais os depoimentos estão mais “corretos” e o que são “contraditórios”. Em um dado momento, por exemplo, são colocadas as falas de Rafael Lopes, integrante da ONG Cacro Resiste intercaladas, com a Márcio Américo, escritor e ex-usuário de crack.
Enquanto Lopes procura defender o que eles acredita serem os direitos dos moradores da Cracolândia, Américo é bastante claro em seus argumentos contra esta Organização e chega a tratá-los como algo ridículo e que promove desserviço. Na montagem, momentos de Rafael Lopes com um olhar vago e suas pausas de reflexão são colocadas junto com as de Márcio Américo sendo assertivo e firme. Independentemente de quem estivesse correto ou, até mesmo, se existe alguém certo nesta equação, o documentário deixa bem claro quem eles enxergam como coerente. As sequências, assim, parecem estar conectadas para a construção de um argumento do que Cukier acredita.
A sensação de que está se consumindo quase uma hora e meia de um material voltado para colocar Heni Ozi Cukier em voga e querer confirmar suas suposições ficam mais fortes se o público pensa que, em 2018, ele foi eleito deputado estadual, pelo Partido Novo. Inclusive, nas cartelas finais, deixam como aviso que o mesmo conseguiu aprovar a Política sobre Drogas do Estado de São Paulo e o Fundo Estadual Antidrogas. Desta maneira, Cracolândia passa uma ideia de propaganda para Cukier. Assim como seu conhecido falatório sobre tentativa de neutralidade e fuga de polos partidários, Cukier, ao lado do diretor Edu Felistoque (Toro), montam uma obra que finge procurar correr de algo enviesado, mas que faz o contrário, deixando bem claro o que pensam e desejam para o país e como querem que o assunto sobre a legislação e as ações do governo em relação às drogas seja tratadas e executadas.
Direção: Edu Felistoque
Confira nossas crítica de festivais aqui!