Estreando na direção cinematográfica, José Carlos Arandiba, o “Zebrinha”, exibiu o seu longa-metragem Ijó Dudu, Memórias da Dança Negra na Bahia, no 27º Cine PE – Festival do Audiovisual. Conhecido como dançarino, coreógrafo e professor, o artista traz em seu documentário figuras importantes para a dança na Bahia, falando de suas trajetórias nos palcos, mas também de toda as suas lutas políticas, contra o racismo e para a expansão e o respeito da cultura negra.
Para realizar tal intento, Zebrinha convoca uma série de relatos, procurando mapear as jornadas destas personagens, elencando experiências individuais e coletivas, que relevam o cenário histórico-social da área dentro do Estado, escutando dançarinos mais veteranos, porém também os mais jovens. Na noite de quinta-feira (07) , Zebrinha subiu ao palco do Teatro do Parque e celebrou a presença de seu longa no festival.
Em seu discurso, José Carlos contou para a plateia um pouco de seu processo na direção e a relevância da obra para a memória da arte baiana e do Brasil. Já na manhã seguinte, em coletiva de imprensa, Zebrinha reforçou como a produção vai além de ser uma obra sua, mas como é algo fruto de uma coletividade, de uma construção em prol desta perpetuação da história, que revela a resiliência da população negra regional e nacionalmente.
Com muito bom humor e paciência para responder todas as perguntas dos jornalistas, Zebrinha ainda reservou um tempo para falar com nossa equipe, concedendo uma entrevista, na qual ele falou sobre ser cineasta pela primeira vez, como funcionou a montagem de seu doc e o seu relacionamento com a sua religiosidade. Confira!
ENTREVISTA
Enoe Lopes Pontes – Durante a coletiva, você disse que já tinha um planejamento da sua direção, fez um storyboard. Daí, eu fiquei pensando como você, depois de ter feito esta parte, como você colocou isso na direção, na hora da prática. Você tinha algum processo de conversa com as personagens, com os entrevistados, como você fazia essa condução?
José Carlos Arandiba – Eu tinha, a princípio, as personagens em um cenário muito específico e o enquadramento também. A minha grande brincadeira foi essa, de conceber isso antes, porque eu não queria que tivesse nenhuma perda de tempo. Porque o tempo era curto, não era nem que eu não quisesse, mas era porque nós tínhamos pouco tempo. Então, eu já tinha tudo isso e eu já tinha as perguntas básicas. A partir destas perguntas, nós fomos desenvolvendo as conversas. Quer ver um exemplo? Os novos. Eles não tinham essa incursão, esse lugar dentro da história, do tamanho que eles têm. Era somente para eles falarem de King e de Augusto Omolu. Só. Porque eles foram alunos de King e de Augusto. Era somente isso.
ELP – Sim, sim.
JCA – E se transformaram em personagens cruciais dentro da história, certo? Quase todos os todos os mais jovens.
ELP – Muito bom! Uma outra coisa que eu fiquei pensando, como foi o processo de montagem, você chegou a estar presente também? Porque dá para notar, só pelo material que ficou editado, que deve ter tido muita coisa, um material muito rico e essas escolhas são, às vezes, até dolorosas. Aí, eu fiquei muito curiosa para saber, como foi esse processo de edição, de montagem. Eu fiquei imaginando que deveria ter sua mão ali também.
JCA – Completamente. 100%! Eu pedi a Thiag0 (Gomes), que fez a montagem e edição. Então, eu fiz um histórico do que era mais importante dentro daquele questionário que eu fiz, do que a gente queria inserir no filme e pedi para ele que fizesse a primeira montagem. Eu acho que tinha, sei lá, 3h30, 4h, algo assim, de quase 20 de material. E vi esse primeiro corte e, a partir deste primeiro corte, eu fui fazendo a remontagem, né? E discutia com ele também. Porque cortar pra mim não é problema. Eu trabalho com teatro, que um texto de 2h20 vira um texto de 1h30 tranquilo! Eu sei perder. Sofro, mas não sofro muito. Então, conversamos e ele foi muito acessível nesse sentido, de não proteger tanto suas imagens, porque ele também foi o diretor de fotografia. Mas, chegou um momento, por exemplo, de 4h, quando chegamos em 2h, acho que a gente começou a conversar e a propor. De 2h para baixo, a gente começou a dialogar mais frequentemente. Depois, eu estava viajando. Eu editei até em Londres esse filme!
ELP – E a última pergunta é, em um sentido mais plural, porque eu sempre fiquei pensando sobre isso. Na sua carreira, qual a sua relação com a religiosidade? Eu senti isso aparecendo no filme também. Então, como é que você acredita que ela chega em seu trabalho?
JCA – Explicando-te. Eu sou religioso, sou de Candomblé mesmo, sou até tatuado, olha (mostra o braço). Tem ferramenta de Ogum, de Exu. Sou raspado, sou feito. Eu tenho todos os ciclos de obrigações completas.
ELP – Uau!
JCA – Todas, certo? Eu sou religioso a 100%, mas eu sei muito bem separar o que é tradição e o que é religião. Eu convivo no meu dia a dia com as minhas tradições, de verdade, mas a religião tem horário específico. Em relação a religião e meu trabalho, a única coisa que eu faço é agradecer por tudo que eu consigo. Agradecer aos meus ancestrais a tudo que eu consigo. Isso eu faço, sempre.
ELP – Entendi.
JCA – Mas, eu sou um religioso muito político, na realidade. Não é sua pergunta, mas eu vou contar para você, quando eu tomei a decisão de fazer parte dessa comunidade, foi uma decisão muito política. Porque, quando eu volto para o Brasil, eu tenho uma educação e uma formação super Europeia. Dança clássica, dança moderna, estudei e trabalhei na Europa a minha vida toda. Quando eu volto para o Brasil, claro, tenho um chamado ancestral, mas não um negócio espiritual, um chamado mesmo da minha cultura. Eu começo a trabalhar com o Bando de Teatro Olodum e com o Balé Folclórico da Bahia. E aí, onde é que eu vou buscar minha inspiração, onde é que eu vou buscar material? Dentro da religião de matriz africana, dentro de Candomblé. E chegou um momento que eu percebi que eu estava sendo um mercenário. Eu só estava tirando, eu não estava dando nada de volta. Para ressarcir o que eu estava tirando, a única forma que eu achei foi fazer parte dessa comunidade, de verdade. Para fazer parte dessa comunidade, eu não queria ser um voyeur. Eu não queria estar observando, nem queria ser um Pierre Verger, um Jorge Amado. Eu queria ser um cara religioso. Aí, eu parti e fui fazer o santo e eu cheguei lá, eu digo isso sempre, eu não fiz o santo nem pelo amor e nem pela dor. Eu fiz por essa razão. Eu cheguei lá, tipo, “moça, eu quero fazer o santo e eu quero ser Ogan daquele orixá ali”.
ELP – Caramba, você escolheu?
JCA – É!
ELP – Você falou assim e foi?
JCA – Graças a Deus, deu tudo certo.
ELP – Tem gente que já nasce abençoado…
JCA – Não sei, eu tomei essa decisão, de fazer parte disso. Então, eu não tive nenhuma questão. Eu sou religioso político. E quando eu trago minha religião para frente não é muito nessa questão, é uma questão política mesmo. É uma coisa que eu acho que tem que ser respeitada. Candomblé e religiões de matrizes africanas têm que ser respeitadas no Brasil. Então, se você vai me respeitar, me respeita com a minha carga ancestral também. Fora disso, eu seria a pessoa mais cética do mundo. Sem problema nenhum.
ELP – Mesmo com santo feito?
JAC – Meu filho eu criei agnóstico.
ELP – Entendi. É, incrível!