Esse é a minha primeira resenha para o Coisa de Cinéfilo e confesso que tive de me transformar em dois para concluí-la. São muitos os afazeres diários que nos impedem de fazer o que realmente amamos e eu realmente amo escrever sobre cinema ou literatura. Este convite foi muito importante para mim, pois reativou meu tesão para escrever resenhas sobre cinema, uma das minhas grandes paixões. Espero fazer jus ao convite e contribuir para um site tão cuidadosamente cultivado.
Adaptar O Homem Duplicado, do saudoso escritor português José Saramago, também não deve ter sido uma tarefa muito fácil para Denis Villeneuve, o qual deve ter se desdobrado em muitos outros para conseguir o resultado visto em Enemy ( a produção Canadá/Espanha recebeu o mesmo título do livro no Brasil). Saramago foi um escritor ímpar, dono de uma narrativa inigualável e de uma imaginação tão criativa quanto provocativa. Seus livros compreendem um universo de possibilidades inimagináveis, cujas histórias transcendem o realismo fantástico ao tanger reflexões filosóficas sobre o ser humano e suas pré-concebidas relações.
Em O Homem Duplicado, o autor nos divide ao expor a história de Tertuliano Máximo Afonso, professor de história que descobre um sósia seu atuando em um filme de baixo orçamento que lhe fora indicado por um colega de profissão. A partir daí, a narrativa acompanha a busca do protagonista por respostas à sua própria duplicidade.
O filme de Villeneuve (também diretor do excelente Incêndios) é uma livre adaptação dessa brilhante história. O diretor e o roteirista Javier Gullón chegaram a preparar uma lista de questionamentos para o autor da obra na qual o filme é inspirado, porém Saramago faleceu antes que ambos tivessem a chance de dirimir suas dúvidas sobre as nuances da história. Entretanto, o trabalho de Villeneuve e Gullón consegue imprimir as sensações típicas de alguns trabalhos de Saramago, como angústia, vertigem e inquietação com os padrões sociais de rotinas e relacionamentos, todas bem presentes na obra em questão.
A princípio, é impossível não perceber que a atmosfera do filme muito se assemelha à da adaptação de outra obra de Saramago para as telonas, Ensaio Sobre a Cegueira (Brasil/Canadá/Japão, 2008), dirigida pelo brasileiro Fernando Meireles. É bem verdade que o clima narrativo de Saramago traz à imaginação de seu leitor um desenho climático próprio aos seus temas, o que ficou bem retratado em ambas as adaptações. Texturas cruas, cores apáticas e muita despretensão nos takes dão ao filme o movimento da narrativa: no início, a repetição cotidiana e o dissabor impregnam o protagonista; ao longo da película, a angústia e o medo do (des) conhecido convoca a tensão, o que, aos poucos, transforma-se em insanidade e/ou aceitação do improvável da vida.
Jake Gyllenhaal nunca foi um ator mediano. Desde Donnie Darko (EUA, 2001) é possível perceber suas inclinações para papéis que flertam com o estranho/diferente e que provocam em si e nos espectadores identificação e repulsa, simultaneamente. Seus personagens em Enemy são tão convincentes em suas particularidades que o próprio movimento de atração/repulsão, que existe entre entre eles, torna-se um novo personagem na história. O vínculo entre ambos e suas respectivas cônjuges caracterizam o filme mais como um thriller erótico, cuja sensualidade não está lá apenas para excitar, mas para entrelaçar uma história que em sua ambiguidade, revela a o caráter dualístico ocidental do homem contemporâneo.
O livro não está presente, predominantemente, na obra fílmica, mas é possível perceber elementos da obra literária no trabalho de Villeneuve. A própria Pilar del Rio, viúva de Saramago, afirmou que certamente não encontraríamos o livro nas telas, mas que Saramago estaria dentro do filme e, de fato, não se pode negar sua presença nas simbologias, no clima incisivo e nas emoções duplamente latentes refletidas nos personagens representados por Gyllenhaal. Se o “eu é um outro”, como diria o célebre poeta francês Arthur Rimbaud, então é exatamente o reflexo de nós mesmos, no próprio espelho, o que nos motiva a assumir nossa(s) identidade(s) e nos estimula a ser quem (e quantos) somos nesta vida.