Afinal, qual a relação entre cinema e público? Se falarmos que a demanda popular gera um filme, estaríamos assumindo que o cinema é um produto comercial? Ou se é o cinema que gera a demanda, aí estaríamos falando de uma entidade própria que orienta os valores da sociedade? Aliás, será que sequer existe alguma relação hierárquica entre cinema e público? Um precisa ditar como vai ser o funcionamento do outro? Ou são apenas conjuntos diferentes que habitam o mesmo universo? Peço perdão por tantas dúvidas, mas Star Wars: A Ascensão Skywalker me fez questionar bastante a função do cinema.
Quando Martin Scorsese (O Irlandês) afirmou que os filmes da Marvel não eram verdadeiramente cinema e mais como uma montanha-russa, o cineasta não mentiu em sua argumentação. Apesar disso, acredito que mesmo um gênio da sétima arte não tem poder para ditar o que deve ser ou não cinema. Todavia, o que é inegável é o quanto ele foi preciso em suas palavras — e aqui peço paciência do leitor, pois vou parafrasear o mestre:
“Muitos dos elementos que definem o cinema como eu conheço estão ali nos filmes da Marvel. O que não está é a revelação, o mistério ou o perigo emocional genuíno. Nada está em risco. Os filmes são feitos para satisfazer uma leva específica de demandas, e são desenhados como variações em um número finito de temas.
Eles são sequências no nome mas refilmagens em espírito, e tudo neles é oficialmente sancionado porque não tem como ser de outra forma. Essa é a natureza das franquias cinematográficas modernas: com pesquisas de mercado, testadas pelo público, vetadas, modificadas, vetadas mais uma vez e novamente modificadas, até que estejam próprias para o consumo.” (tradução retirada do AdoroCinema).
Bem, e o que Star Wars: A Ascensão Skywalker tem a ver com a Marvel? Primeiramente, não podemos esquecer que todos fazem parte de uma mesma companhia (Disney), preocupada em monopolizar o mercado de maneira que mais gere lucros e menos riscos possíveis.
Por outro lado, a diferença entre o universo de Kevin Feige e o filme de J.J. Abrams fica gritante quando vemos que, mesmo quando os dois fazem a mesma coisa — entregar fan service —, há uma diferença gritante entre os resultados. E qual o motivo? Primordialmente, Ultimato é um amálgama de mais de 20 filmes que foram construídos dentro de uma unidade, apesar de cada aventura ter sua particularidade.
De maneira oposta, há um certo momento de A Ascensão Skywalker que C3PO tem sua memória apagada. Logo depois, o robô consegue recuperá-las parcialmente, com exceção de todas as suas aventuras mais recentes. Não há cena que melhor o que é esse filme. Ao estar mais preocupado em anular o legado vanguardista deixado por Rian Johnson em Os Último Jedi, o último capítulo da Saga Skywalker se torna um gigante retcom e esquece que apenas a negação do passado não basta.
O roteiro de J.J. Abrams e Chris Terrio (Batman vs. Superman, o que explica muita coisa) assume tanto seu caráter mercadológico que chega a “matar” CINCO personagens, apenas para desfazer essa ilusão instantes depois. É, literalmente, como uma montanha-russa. Afinal, o filme manipula momentaneamente as emoções do público, apenas para no final desfazer suas ações, mostrando que nunca houve um verdadeiro risco.
Ainda em roteiro — e aqui abro uma grande aspas para falar de temas sociais e não fílmicos — me incomoda profundamente o quanto este filme é conservador, retrógrado e conveniente com uma parte preconceituosa dos fãs de Star Wars. Desde o Despertar da Força, há uma brincadeira na internet falando que o Finn (John Boyega) e Poe (Oscar Isaac) são um casal. Assim, o filme, como uma criança de 10 anos que precisa auto afirmar sua masculinidade diante dos coleguinhas de classe, vai enfiando goela abaixo diversas situações sem nexo apenas para responder a audiência que os dois protagonistas são héteros. Essa é, literalmente, a única justificativa para a existência das as novas personagens femininas, vividas por Keri Russell e Naomie Ackie.
Similarmente, outra covardia que não pode ser omitida é o que Star Wars: A Ascensão Skywalker faz com Rose. Para quem não sabe, a atriz Kelly Marie Tran sofreu um grande assédio moral e ataques xenofóbicos após o filme, a ponto de apagar suas redes sociais. Por isso, é um golpe baixo colocar a personagem quase como uma figurante, mostrando uma subserviência de Abrams aos trolls de internet. Mas ok, vamos botar um beijo entre duas figurantes para fingirmos que nos importamos com essas causas? Tenta outra, J.J.
Bem, e se a gente ignorar todas as decisões arbitrárias, visto que mesmo péssimo roteiro nas mãos de uma boa direção pode resultar em um grande filme? Honestamente, não entendo o que aconteceu com Abrams aqui. Revendo a morte de Han Solo em O Despertar da Força, percebe-se como o timing daquela cena permite que ela seja sentida. Já no filme de 2019, é o inverso. Uma montagem frenética impede a formação de qualquer catarse ou potencialidade dramática. Em particular, há um(a) protagonista importante que se vai e o longa não deixa que o espectador senta aquele momento, já seguindo em frente, como estivesse mais preocupado em encerrar todas as pontas soltas do que criar um vínculo emocional.
Ainda nesta lógica mercadológica de filme como um produto, o terceiro ato de A Ascensão Skywalker reafirma a questão. Desse modo, qualquer pessoa que tenha visto Vingadores Ultimato poderá notar duas gigantes similaridades com ele: a abertura dos portais e frase épica de Tony Stark. Nada mais revelador do que uma empresa bilionária tentar emular os acertos de uma franquia em outra. Mesmo que a gente ignore que Star Wars é cinema, pensando apenas um entretenimento, até nisso ele falha. Em um total anticlímax, sua cena de ação mais original ocorre no segundo ato, justamente por explorar diferentes cenários com a ligação telepática entre Rey (Daisy Ridley) e Kylo (Adam Driver).
Neste sentido, lamento que A Ascensão Skywalker não trabalhe mais a fundo o único elemento que J.J. recicla de Rian Johnson: a tensão sexual entre os dois protagonistas. Curioso que provavelmente a cena que mais incomodou a todos no cinema é a que mais me agrada. Enxergo a trilogia sequel não como uma simples dualidade maniqueísta entre bem e mal, como as duas anteriores, mas como uma grande tragédia grega de amor. Da mesma forma, até enxergo algumas coisas shakespearianas nesta lógica de uma alma se sacrificando pelo outra.
No fim, o novo (e, certamente, não o último) fim da saga Star Wars é como uma montanha russa sem looping. Retomando os questionamentos do primeiro parágrafo, nada mais significativo do que um blockbuster encerrar os anos 2010-2019 se mostrando totalmente refém de executivos engravatados e sua própria fan base tóxica. Pelo menos os bonecos do Baby Yoda vão vender muito, não é?
Direção: J.J. Abrams
Elenco: Carrie Fisher, Mark Hamill, Adam Driver, Daisy Ridley, John Boyega, Oscar Isaac, Anthony Daniels, Naomi Ackie, Domhnall Gleeson, Richard E. Grant, Lupita Nyong’o, Keri Russell, Joonas Suotamo, Kelly Marie Tran, Ian McDiarmid
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