Aceitar a velhice nunca é fácil. Há quem lide melhor com o assunto e há os que parecem querer maquiar a efemeridade do tempo através de pequenas encenações daquilo que já fomos algum dia. Este é o caso da protagonista Pacarrete (Marcélia Cartaxo, Madame Satã), que tem seu nome derivado do francês, pâquerette — margarida. Já idosa, esta sonhadora-acordada vive a ânsia de conseguir realizar uma apresentação de ballet na festa anual de sua cidade, Russas.
Para isso, Pacarrete ensaia religiosamente os passos de sua coreografia, enquanto uma fita cassete reproduz uma apresentação em preto-e-branco de tempos passados. Nesta linda dança, o diretor Allan Deberton deixa a imagem de sua musa se sobrepor a da profissional que aparece na televisão, unindo o passado e presente. Todavia, minutos depois, um problema com o rolo da fita interrompe aquele sonho acordado. Quando o dono do boteco do bairro, Miguel (João Miguel, Estômago), consegue consertar o problema técnico, ele faz um alerta: “é melhor trocar para o DVD”. Pacarrete ignora o conselho.
Esta cena, aparentemente simples, é o resumo de tudo que acontece em Pacarrete. A negação da própria fragilidade e a da inexorável destruição da própria existência. Ela sabe que há uma data de validade até que aquela fita cassete quebre de novo, mas não aceita a renovação para o moderno. Durante a primeira parte do filme, há essa estrutura quase em esquetes, na qual o enredo não avança — o que não é algo ruim. São pequenos episódios cômicos da protagonista passando por situações que vão revelando essa sua dificuldade em aceitar que sua vida é mais mundana e medíocre (no sentido de qualidade média) do que acredita.
Por exemplo, é curioso como Pacarrete está sempre limpando a calçada na frente de sua casa. Afinal, aquilo é um trabalho inútil. Alguém sempre irá passar e sujar o chão novamente. Mas para ela, aquilo se torna uma questão de orgulho. Mostrar, mesmo que momentaneamente, que ela detém o controle de algo que está fora de seu alcance. Mais uma vez, a metáfora explícita para o seu próprio envelhecimento.
De certa forma, Pacarrete não é uma personagem muito fácil de se gostar. Ela anda de nariz empinado, maltrata a empregada da casa — ainda que Deberton camufle isso com pitadas de humor — e xinga a todos, principalmente jovens. Claramente, há esse ressentimento e inveja daquelas figuras que ainda terão muitos anos pela frente.
No entanto, não acho que a principal obrigação do público, principalmente o jovem, seja se identificar com Pacarrete. É mais sobre sentir pena daquela mulher. A personagem de Cartaxo é essa pessoa que acha que o dinheiro compra tudo e insere palavras francesas no meio das frases para se sentir superior aos demais moradores daquele lugar. Em sua cabeça, ela deveria estar em Paris e não em Russas.
Minimizando a armadilha de retratar uma protagonista incomunicável com a audiência por conta de sua soberba, Deberton traz momentos de enorme fragilidade para a bailarina de Russas. Neste sentido, as cenas de nudez no banho de mangueira são essenciais para que vejamos a impiedade do tempo. Não há maquiagens, vestidos de bailarina, camisas abotoadas até a gola, mas apenas a exposição de um corpo marcado pelos anos.
Por isso, penso que o uso exagerado de humor durante a primeira metade sabote Pacarrete. Tanto o roteiro à Zorra Total quanto a atuação caricata de Cartaxo — e aqui falo apenas comicamente, pois dramaticamente ela está impecável — impedem com que o potencial dramático da direção de Deberton atinja o espectador por quase uma hora de filme. Neste sentido, o próprio humor acaba saindo como um tiro pela culatra dentro de toda essa ideia de compadecimento pela personagem, pois as próprias situações criadas, na prática, ridicularizam as atitudes impulsivas de Pacarrete tomadas por conta de sua velhice.
Assim, quando a trama muda os rumos para o drama, aquilo tudo acaba soando muito abrupto, mas faz sentido se pensarmos que após um certo acontecimento fatídico, é como se a protagonista saísse do mundo da lua e levasse um choque de realidade. Naquele momento, ela percebe que o fim está mais próximo do que imagina. Por isso, me agrada bastante como Deberton faz uso da sombra da protagonista nesta cena-chave, representando a morte como essa figura à espreita. De mesmo modo, ao começar a correr em desespero pela casa, aquilo tudo parece um grande ballet quando filmado de cima. Neste caso, o ballet que tanto foi o sinônimo de vida para ela, é agora a dança da morte.
No final, é um pouco frustrante que não parece haver lições para Pacarrete diante de todos as tragédias que vão acontecendo em sequência. Mas, refletindo, me parece condizente. Quantos idosos mudam de pensamento nos anos finais de sua vida? Ao invés de aceitar a própria imobilidade diante das mudanças do mundo, é mais fácil sonhar acordado diante do último suspiro de vida.
Direção: Allan Deberton
Elenco: Marcelia Cartaxo, Zezita Matos, Soia Lira, João Miguel
Assista ao trailer!
*Filme assistido durante exibição no Festival do Rio 2019.