Incompatível Com a Vida. Somente ao imaginar como deve ser a sensação de escutar esta frase de uma médica em uma consulta, arrepios passam pelo corpo. Eu não sou mãe, ainda não tive filhos, mas há algo no filme da diretora Eliza Capai que mexe em algo profundo em mim. Talvez, seja a velha questão do quão as mulheres são preparadas consciente e inconscientemente para o fato de que a maternidade passará por suas vidas.
Possuindo ou não filhos, somos levadas a crer que ocupamos a posição de cuidar. Ou talvez seja mais do que isso? Porque é complexo explicar as sensações que perpassam o corpo e a mente durante a exibição deste documentário, vencedor do prêmio principal no Festival é tudo verdade. E tudo começa de uma forma quase mística e premonitória.
Eliza começou a filmar seu processo de gravidez desde o princípio. Era pandemia, governo Bolsonaro. Então, logo nas sequências iniciais já dá para sentir aquele gosto agridoce e o prenúncio de algo angustiante que virá. Este estabelecimento de atmosfera é bem conduzido, pois com pouco tempo de tela, através de ruídos e de um breve diálogo entre Eliza e o pai do seu neném. Neste sentido, há aqui algo que eleva a potencialidade narrativa.
Existe a chance de processamos as informações sobre o que são as gestações com má formação do feto junto com Capai e com outros casais que ela escolheu escutar. Os relatos são intensos e a montagem de Incompatível Com a Vida é precisa, pungente, direta. As conexões das vozes das mulheres e homens que tiveram o sonho de serem pais interrompido são mescladas com a própria dor de Eliza, que passa pelo mesmo luto e o transforma em arte. Algumas cenas são impactantes e gráficas demais, porém eu acredito que ela tem uma licença em sua obra maior do que qualquer outra possível.
Eliza precisa expurgar o quanto der todo o sofrimento de si. Eliza parece querer ajudar também, de alguma forma, seus entrevistados. Nesta lógica, nos tornamos uma espécie de rede de apoio, que escuta todo aquele arsenal corrosivo de frustração, de escolhas cruéis que são dadas para os pais, de desesperança. Ainda que o peso seja grande demais e sufoque quem assiste, não tem como ser diferente neste longa, infelizmente.
Em qualquer outra obra, esta que vos escreve diria que faltam respiros na produção, mas o assunto são fetos que jamais se tornarão presença naquelas famílias (ainda que o amor por eles exista e persista, dentro dessa incompatibilidade com a vida). Nesta turbulência dilacerante, é notável o zelo com as imagens, mostrando o talento de Capai como diretora, que escolhe apresentar o enredo indo além do chamado “cabeça flutuantes”.
Sim, existem os momentos de entrevista, mas também de performance de Eliza e de instantes de imagem contemplativa, de silêncios ou ruídos, que completam a junção de significados imagéticos e simbólicos. Por isso, Incompatível Com a Vida é uma experiência forte, porém que também conta com uma técnica consciente. Há uma seleção equilibrada de personagens, uma decupagem que contribui ainda mais para a força dos relatos, uma edição que costura todas as histórias narradas como se fossem todas uma só, mas sem retirar a personalidade de cada uma.
Estes são os pontos de maior qualidade, mas, para além disso, também existem dois pontos técnicos que chamam a atenção. Tanto o desenho de som quanto a fotografia também são bem executadas. Os sons compõem as cenas na tela, as falas e expressões faciais dos entrevistados. São nos detalhes sonoros que os elementos da vida são recordados e isso eleva a melancolia por aqueles bebês que se foram. Em termos de fotografia, a iluminação é acertada.
Primeiramente, é possível perceber, durante os depoimentos que os mesmos são filmados, pois a luz emite certa profundidade de câmera, escapando do “chapado”, que geralmente aparece em docs com entrevista, bem como nas performances de Elzia, que há uma trabalho solar, afastando a sombra, que seria o mais óbvio para relatar a ausência de vida. Neste sentido, Capai e sua equipe são inteligentes e emitem uma mensagem crucial para a argumentação da produção.
Este é um documentário sobre a vida, mesmo que os bebês sejam ditos incompatíveis com ela. Há luz, há força na voz dos pais, que contam sobre seus sentimentos, existem as janelas abertas, nas quais o vento balança as cortinas, mesmo que seja em um momento de introspecção e lágrimas. Nesta lógica, somente no momento do clímax da sessão é que esta luminosidade se esvai e vemos o feto nas mãos de Capai. Assim, enquanto filme, esta é uma obra que vale a pena de ser conferida.
No entanto, a única recomendação, para finalizar esta crítica, é que o público o assista em dia bom, porque Incompatível Com a Vida reverbera por dias no coração e na mente da plateia. É uma dose de dor “porradeira”, sobretudo para aquelas pessoas que podem gestar a vida em seus corpos. Vejam, mas com este cuidado.
Direção: Eliza Capai
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