Crítica: Festa da Salsicha

Pense no cenário atual. O setor de alimentos industrializados crescendo assustadoramente a cada ano no mesmo compasso do aumento dos índices de obesidade. Ao mesmo tempo, a gastronomia anda em alta com reality shows e a proliferação de cursos no ramo, que angariam cada vez mais futuros chefs, pessoas que até ontem tinham a culinária apenas como hobby. Nessa mesma sociedade, através de mídias sociais como o Instagram ou o Facebook, gourmetiza-se tudo, um simples hamburguer vira um similar visualmente sofisticado da alta gastronomia, tem-se prazer (muito prazer) com essas imagens dessa cultura junk food. É esse contexto que inspira a criação das personagens e do universo da animação adulta Festa da Salsicha.

Entre embutidos e frutas, Festa da Salsicha leva o termo food porn às últimas consequências com um filme de conteúdo ácido e “politicamente incorreto”, dando um novo sentido ao termo “orgia gastronômica”, algo bastante popularizado hoje em dia, por sinal. Pela via da irreverência, a comédia é genial em sua crítica à sociedade e sua incessante busca por válvulas de escape para aliviar as angustias e incertezas terrenas. Assim, os alimentos da animação cultivam uma veneração irrefreada pelo Deus humano, que imaginam levar todos para uma espécie de paraíso, quando na verdade o que ocorre é um verdadeiro extermínio durante as refeições.

No filme, os alimentos de um grande supermercado sonham em sair da prateleira das suas seções por pensarem que distantes dali terão uma vida melhor. Cultivando uma adoração pelos humanos, eles mal sabem que da porta para fora serão devorados sem a menor piedade por aqueles que consideram divinos (e como os deuses podem ser cruéis!). Nesse cenário, uma salsicha e uma baguete conseguem acidentalmente escapar das suas respectivas embalagens e unem forças com outros alimentos para revelarem aos demais a verdade por trás da passagem dos humanos pelo supermercado. Assim promete ter início uma grande rebelião das comidas contra os seus algozes, os homens e as mulheres que, famintos, lotam seus carrinhos de compras.

Roteirizado pela trupe de Seth Rogen (Vizinhos 2), Festa da Salsicha é uma criação do próprio ator, que dubla o protagonista Frank, Jonah Hill (O Lobo de Wall Street), que dá voz a salsichinha Carl, e Evan Goldberg, diretor de A Entrevista e É o Fim. A ideia era fazer uma comédia animada voltada para adultos repleta de piadas de cunho explicitamente sexual com alimentos típicos da indústria do fast food como protagonistas, realizando provocações, através das linhas do seu roteiro, à sociedade em suas mais diversas frentes, mas, sobretudo, na sua relação com a fé (por uma religião, ideologia etc.) e como isso interfere na expressão individual dos sujeitos que fazem parte desse coletivo. No filme, em particular, interessa entender como isso é articulado com a sexualidade, mas podemos associar essa repressão e a posterior libertação de crenças a outras dimensões das nossas vidas.

salsicha

No território entre o sagrado e o profano que destinamos aos nossos lanches (reforçando, temos prazer orgástico e consideramos sacros nossos momentos com eles), Festa da Salsicha tem um olhar anárquico para uma sociedade que deposita sua fé em toda sorte de crença. A leitura central que podemos ter do filme versa em torno da sua crítica ao fanatismo religioso e quão libertador pode ser se desvencilhar dele a depender das circunstâncias, basta percebermos como as personagens, principalmente as femininas, são sexualmente reprimidas no início do longa por seu temor às regras do Deus humano e, ao final do filme, todos são libertados disso a partir de uma revelação. Nesse momento, salsichas, baguetes e tacos se entregam aos seus prazeres carnais e… Bem, é melhor assistirem para ver o que ocorre.

Pelo ponto de vista narrativo, o filme aparenta ter seus percalços, mas Festa da Salsicha não tem como forte a construção de arcos complexos e “redondinhos” para os seus personagens já que o que pretende mesmo é levar sua sátira aos extremos das associações. Nesse sentido, prevalecem o non sense e os referenciais. Prova disso são três momentos geniais do longa: a cena em que Frank e Brenda saem das suas embalagens e são abandonados no mercado, uma sequência que nos faz lembrar filmes de guerra como O Resgate do Soldado Ryan, com direito a farinha de trigo fazendo as vezes de fumaça e dando um efeito acinzentado na fotografia; a revolta dos alimentos contra os humanos no mercado, que nos remete às cenas de grandes batalhas épicas em produções como O Senhor dos Anéis ou Game of Thrones; a “confraternização” final entre as comidas, que me fez lembrar do famigerado Calígula, polêmica co-produção da Penthouse com Malcolm McDowell e Helen Mirren no elenco.

É uma pena que comédias, sobretudo comédias com um teor tão corrosivo quanto esta, não tenham o mesmo status de outros gêneros cinematográficos, o que promete relegar a Festa da Salsicha apenas as notas de rodapé do ano de 2016. Mesmo que venha na embalagem de um grande besteirol tipicamente americano, o filme possui chaves de leitura complexas, o que evidencia a sofisticação do seu roteiro. Claro que uma sofisticação que vem pela via daquilo que beira o vulgar. E se a gente pensar que estamos falando de um universo no qual a fé estabelece um regime de proibições e tais interdições estão relacionadas com a sexualidade das personagens, nada mais natural do que um filme que apele o tempo inteiro para piadas em torno do sexo. Em um ambiente de castrações, o que está mais presente nas conversas e nas relações dos sujeitos é justamente aquilo que se proíbe. Assim, a hiper sexualização das personagens e de toda a história é bastante coerente e está à serviço das pretensões críticas dos seus realizadores.

 O longa de animação é uma curiosa realização de Seth Rogen e cia., que parecem não esgotar a capacidade de nos surpreender a cada instante com algumas das mais interessantes pérolas do absurdo que um produto do seu nicho pode proporcionar. Da associação do inanimado com situações do mundo real (imaginem, por exemplo, o que eles conseguem fazer com um chiclete e até mesmo com fezes!) ao seu olhar ácido para o que tem levado pelo cabresto a sociedade contemporânea, uma crença em qualquer coisa que nos castra, Festa da Salsicha é um filme que berra, muitas vezes grosseira e graficamente, a sua genialidade.

Assista ao trailer do filme: