Quando A Luz no Fim do Mundo começa, um longo monólogo sobre a Arca de Noé, de pai (Casey Affleck, Manchester à Beira Mar) para filha, Rag (Anna Pniowsky, Ele Está Lá Fora), ecoa sob a escuridão ao redor dos dois. Não escolhido ao acaso, esse conto bíblico ressoa diretamente na narrativa. Apesar de não serem um casal e nem em busca de um barco, é como se o Pai (o protagonista não é nomeado) e Rag fugissem da inevitável tempestade que está chegando.
Vivendo isolados em uma barraca na floresta, surge a impressão inicial que a história se assemelhará a Capitão Fantástico e Sem Rastros. Afinal, ambos são sobre famílias que decidiram seguir uma filosofia anti-capitalista na natureza. Entretanto, ainda que seu design de produção — a não ser pela solidão constante — não indique isso, rapidamente A Luz no Fim do Mundo revela ser uma distopia.
Vários anos após uma praga matar praticamente toda a população feminina, o mundo entrou em colapso e os homens sobreviventes não souberam lidar com tal ausência. Ou seja, o caos anárquico foi instaurado. Com imunidade, que o roteiro não se preocupa em explicar, Rag é talvez a única mulher existente. Assim, ela e o pai vivem pelas sombras e beiradas, justamente para a menina não chamar atenção — com um corte de cabelo curto sendo um desses artifícios. É aí que o filme dialoga diretamente com Filhos da Esperança além do jogo The Last of Us.
Com um ritmo contemplativo e vagaroso, boa parte de A Luz no Fim do Mundo se alterna entre amplas paisagens inabitadas (florestas, estradas, campos de neve) e conversas entre protagonistas no escuro. Apesar de visualmente opostos, esses planos servem à mesma função. Tanto o sentimento de fugere urbem quanto os close-ups claustrofóbicos ressaltam que os dois estão sozinhos em suas jornadas. Um funciona para o outro como a luz no fim do mundo, como o título indica.
É possível identificar três camadas na narrativa. Primeiramente, em sua superfície, a jornada de pai e filha que lutam pela sobrevivência, precisando enfrentar a falta de recursos e estranhos que cruzam seu caminho. Nesse sentido, Casey Affleck (que também assina a direção e o roteiro) não cria exatamente um clima de paranoia, mas uma inquietação silenciosa que, mesmo nos momentos mais calmos, pode interromper a paz dos dois a qualquer momento.
Em sua segunda camada, é um intenso estudo de uma relação paternal. Não só isso, como também sobre amadurecimento e a proteção até abusiva que muitos pais têm com os filhos. Em um cena chave, Rag está pendurada da janela de uma casa, enquanto seu pai segura suas mãos, e diz: “me solte”. Por mais que tenha, obviamente, boas intenções, o personagem de Affleck nunca deixou sua menina viver, sempre podando sua liberdade.
Por fim, A Luz no Fim do Mundo é uma grande metáfora para o instinto predatório masculino. Transportando o que já acontece no dia-a-dia para um mundo distópico onde só há uma mulher viva, homens brigam e se matam para ter seu controle. É uma obsessão e um desejo insaciável. Todavia, ressalta-se aqui — mesmo que crítico que vos fala costume separar a arte do artista — o quão pretensioso é Casey Affleck. Para uma pessoa acusada de tantos episódios de assédio sexual, soa ridículo o fato de que ele escreveu um monólogo para si mesmo, onde ensina didaticamente à filha sobre xenofobia, objetificação feminina e assédio sexual.
Direção: Casey Affleck
Elenco: Casey Affleck, Anna Pniowsky, Elizabeth Moss, Tom Bower
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