A Jangada de Welles

Crítica: A Jangada de Welles

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A empreitada do cineasta estadunidense Orson Welles pelo Brasil para gravar parte de um projeto da RKO na América Latina assumiu uma aura mítica com o passar das décadas. Ela teve como principal resultado o documentário É Tudo Verdade de 1993, que enfim monta os registros de Welles no litoral do Ceará da maneira como ele pretendia contar a saga dos jangadeiros. O documentário A Jangada de Welles retorna ao tema, mas procura oferecer uma perspectiva nossa e contemporânea para a trivia cinéfila, refletindo sobre as condições dos pescadores que se tornaram protagonistas do pretenso filme de Welles, avaliando o que daquele período mudou e o que segue igual.

Como concebido, o projeto É Tudo Verdade da década de 1940 era parte da política de “boa vizinhança” dos EUA. O objetivo era conquistar o mercado latino-americano ao mesmo tempo que os países do continente conseguiam uma imagem que lhes favorecia. Claro que a RKO não encaminhou Orson Welles ao Brasil a fim de registrar a saga de um grupo de pescadores cearenses reivindicando melhores condições para a categoria junto ao então presidente Getúlio Vargas, a intenção era que o cineasta tornasse o carnaval carioca o protagonista do seu segmento no É Tudo Verdade. Demitido do estúdio, que não se interessava por essa realidade do país, e com o projeto sobre a América Latina cancelado, Welles retoma seu interesse pela história dos pescadores cearenses. Era um filme de recursos escassos, com membros da comunidade local como atores e técnicos e uma ajuda de profissionais brasileiros. As cenas do longa brasileiro de Welles só foram resgatadas na década de 1980, dando origem ao documentário de 1993 que todos conhecem.

Toda a história por trás dos esforços de Welles narrada no É Tudo Verdade de 1993 está presente em A Jangada de Welles. O filme de Firmino Holanda e Petrus Cariry retoma os eventos por meio de imagens de arquivo e depoimentos, estratagemas esperados do formato documentário. O longa traça todos os complicadores na representação dessa jornada, além de resgatar figuras marcantes do projeto como o pescador Jacaré, morto durante as filmagens, e Francisca Moreira, moça da comunidade que se tornou a estrela do filme do diretor.

A Jangada de Welles

O que mais marca A Jangada de Welles pelo ineditismo em relação ao filme de 1993 é a preocupação que ele tem com a condição dos protagonistas do filme do celebrado diretor estadunidense. Demora um pouco para A Jangada de Welles sair do lugar mítico e se aproximar da perspectiva que o distingue de outros olhares para os mesmos eventos. O filme mostra brilho quando mitiga a realidade da classe entre presente e passado, especificamente, quando aborda a persistência da precariedade das condições trabalhistas dos “herdeiros” de Jacaré. Quando a narrativa sobre a odisseia empreendida pelos jangadeiros cearenses deixa de ser uma obsessão do Homero representado por Orson Welles e passa a ser uma história dos trabalhadores brasileiros, o longa fica mais interessante para o espectador, abordando inclusive a prática corriqueira de remoção das comunidades pesqueiras do litoral nordestino, seu lugar de trabalho, em prol da especulação imobiliária.

É uma pena que o longa de Petrus Cariry e Firmino Holanda não tenha mais tempo para ir ainda mais a fundo nessa outra leitura sobre É Tudo Verdade de Orson Welles porque é no momento em que se descola de um olhar cinéfilo reiterativo é que A Jangada de Welles evidencia originalidade e urgência. É um documentário que não vê sua força e impacto abalados pela sensação de reiteração que deixa em espectadores já “iniciados” no assunto, trazendo novos dados e estendendo a possibilidades de tema originados pelo evento que retrata, mas não deixa de trazer uma ponta de frustração por reservar seu melhor em pouquíssimos minutos finais em virtude de uma dificuldade de desprendimento cinéfilo do mito Orson Welles e seu não realizado filme no Ceará.

Direção: Firmino Holanda, Petrus Cariry

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