Dias Perfeitos

52º Festival du Nouveau Cinéma de Montréal: Dias Perfeitos

4.5

Muitas reflexões, sensações e emoções são despertadas em Dias Perfeitos, novo longa-metragem de Wim Wenders (O Sal da Terra). Entre uma construção imagética, que permite uma imersão profunda do espectador, e um roteiro meticuloso – escrito por Wenders, ao lado de Takuma Takasaki (Honokaa bôi) – pensamentos profundos sobre o planeta que habitamos ocupam a mente durante a projeção. A começar por uma pergunta central, que parece ressoar ainda depois do final da sessão.

Sendo ela: o que nos torna visíveis ou invisíveis nesse mundo onde vivemos? Um carro, um emprego, um prêmio, um salário…? As distinções e marcas sociais estão estampadas em nossa sociedade, para todo mundo ver. As castas do capitalismo dividem a população, colocando algumas à margem. Certamente, funcionários que trabalham com serviços de limpeza são constantemente invisibilizados.

É como se as pessoas quisessem esquecer que elas produzem sujeira, excrementos, bagunça e fluidos. E quem toma conta desse caos humano produzido há tanto tempo em nosso planeta parece ganhar uma carga de rejeição, que beira a rejeição moral, na qual existem aqueles que desejam retirar o título de humano destes profissionais que, na verdade, cumprem um papel salutar e indispensável para a continuidade dos cotidianos alheios.

Além disso, somos muito mais do que nossas tarefas remuneradas. Somos embebidos de singularidades, com desejos, sonhos, sentimentos e gostos, que nos transformam todos os dias e nos movem. E é isso que Takasaki e Wenders conseguem passar de forma tão delineada em Dias Perfeitos. Hirayama (Kōji Yakusho) é um homem sagaz, sensível, bondoso, dedicado, organizado, um intelectual, de perspicácia profunda e completa, com um olhar digno para o outro.

Acompanhar a rotina de Hirayama e como esse seu dia a dia quadrado vai se transformando, a partir dos estímulos que a vida lhe entrega inesperadamente, é intenso e faz os olhos se encherem de lágrimas durante todo o filme. Sim, Hirayama é responsável pela limpeza dos banheiros públicos do Tokyo, gerenciado pela empresa The Tokyo Toilet project. A tensão da sua personalidade versus o cargo que ele ocupa é posto em cena a todo momento.

Dias Perfeitos

A frieza e o desprezo de quem não enxerga aquele senhor como um indivíduo é o mais forte aqui em Dias Perfeitos. A construção de papel de Kōji é essencial aqui para a composição deste cenário repleto de camadas. Os gestos precisos do intérprete, combinados com a decupagm de Wenders, direcionam o público para o que importa na narrativa. Só existem closes ou movimentos de câmara, bem como ações com gestuais mais amplos, em momentos específicos.

As velocidades mais aceleradas estão nos coadjuvantes, por exemplo. Esta estratégia eleva a força do discurso da obra, que convoca a plateia a fazer uma análise político-social do mundo, mas também uma autoanálise. E é nesse contraste do universo de  Hirayama com os outros ao seu redor, que compreendemos que o protagonista é, em toda sua totalidade. Todavia, quem foi ele no passado é turvo e esta também é uma decisão acertada.

A razão para que um homem que parece ter tido uma educação formal de qualidade e com uma família aparentemente estável financeiramente não importa. Quem Hirayama  é no presente, isso que é relevante e que dialoga com a premissa central da produção. Há também muita melancolia dentro da trama. O ciano se espalha na tela e é possível sentir esta pulsação interna da personagem, de forma quase sensorial.

Ele é bondoso, cuidadoso e gentil, mas também triste e solitário. É nesta chave que resta alcançar o que Dias Perfeitos quer imprimir em sua história: quem é esse outro que é posto em uma caixa determinada por classes, por um serviço diário, que pode não definir absolutamente nada da personalidade de alguém. Com todo este contexto, é notável que o longa toca no mais profundo da alma de quem assiste.

Ele é simples, em uma primeira olhada, porém repleto de níveis de complexidades, o que torna a sua fruição ainda mais prazerosa. É um enredo que fica na memória, que conta com algo que fica ali, preso na mente, dias após  a sua exibição. Ele pode não ter nada de tão novo em termos técnicos ou discursivos, mas é um trabalho rico, precioso, que conecta o espectador com o que há de real a ser vivido, pois os laços que estabelecemos na vida é o que importa no final das contas, não é mesmo?

Direção: Wim Wenders

Elenco: Kōji Yakusho, Tokio Emoto, Sayuri Ishikawa

Assista ao trailer!