Barravento

XIX Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema: Barravento

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Entre o não dito e o esgarçado em longos monólogos, Barravento convoca um jogo de investigação humana, em um tensionamento entre questões individuais e coletivas. Primeiro longa-metragem de Glauber Rocha, a produção traz justamente os embates internos de suas personagens, em relação ao todo que os cerca. Em uma aldeia de pescadores, o trabalho é posto em voga, seja ele o formal ou o religioso. 

As crenças, seja no sistema (não há muito tempo escravagista) ou nos próprios atos religiosos, aparecem trazidos pela figura de Firmino (Antonio Pitanga), antigo morador da região. O divino e a moral estão sempre em cena. Quando o público escuta as reivindicações de Firmino ou as problemáticas dos aldeãos, surgem sequências dos ritos do candomblé, como em uma dinâmica de purificação e questionamento. 

As sonoridades e a fé conectam aqueles cidadãos, mas os divide também. É uma rede complexa de situações, que coloca em xeque o tempo inteiro as decisões das personagens. Neste sentido, o que é colocado na luz e na sombra por Glauber é uma pista do caráter, da sensibilidade e do grau dos problemas de cada morador da região. Firmino age quase sempre na noite, por exemplo, e o sombreado que fica ao seu redor revela as suas intenções e a sua aura.

Ao mesmo tempo, Firmino também carrega fragilidades que são notadas nas escolhas da equipe de arte do longa. A caracterização do protagonista deixa nítido como a sua revolta crescente vai corroendo a sua alma. Inicialmente, ele veste muitas roupas e é apresentado com uma elegância sarcástica, daqueles que saíram de uma condição de maior pobreza e obtiveram certa ascensão. Todavia, as inseguranças de Firmino permanecem dentro dele.

A inveja que ele carrega consigo, bem como a raiva contra seus conterrâneos, destroem suas vestes e Firmino vai se despindo de suas máscaras sociais, expondo todas as suas emoções desnudadas e evidenciadas pelo esvaziamento de todo o seu equilíbrio. A única força que colabora com as suas intenções está materializada na presença de Cota (Luiza Maranhão), que não é vista por Firmino com sua maior fortaleza, mas uma peça dentro de seus esquemas.

Ainda assim, Cota é uma espécie de respiro dentro do enredo. Mesmo que a exploração de suas camadas deixe a desejar, a ausência de maniqueísmo na sua construção pode ajudar quem assiste a criar tanto empatia para com ela e outras personagens, como entender que os limites de bem e mal não são traçados em uma linha reta. Cota é uma pessoa, uma figura complexa, repleta de sensações que mesclam os pensamentos tanto de Firmino quanto de outros moradores da aldeia.

Barravento

Ela não é uma coisa só, é várias, em meio às suas vontades e também na maneira que é vista por aqueles que a rodeiam, devido à sua beleza e personalidade forte. Nesta lógica de todas as relações impressas em cena, o discurso político/social é forte na obra. O questionamento central é a imobilidade diante da opressão, a lacuna da insurreição perante as injustiças sociais e o pacto com uma suposta comodidade.

No entanto, o filme de 1962 ganha outro tom quando o olhamos com as vistas de 2024. A busca pela rebelião contra os paradigmas reguladores da sociedade, que sufocaram e reprimiram a população não privilegiada, seja por raça e/ou classe, pode ser encarada atualmente, talvez, de uma maneira distinta. É difícil de demarcar essa fruição como algo totalitário, pois não o é, de fato.

O que ocorre é que, para alguns, a aldeia pulsa coragem e libertação, pois há uma confiança em suas crenças individuais, na força da coletividade e do trabalho de subsistência. Os habitantes daquela praia são a resistência, a voz que nunca se calou e que perdurou por décadas e mais décadas. Dito isso, o incômodo central de Barravento pode ser, justamente, essa visão distanciada das mazelas da sociedade e o que é posto como alienação e luta.

Visto que o longa é de 1962, não seria justo julgá-lo incisivamente, mas o olhar crítico para a interpretação da intelectualidade branca do anos 1960 não pode deixar de existir. O Cinema Novo foi um movimento inegavelmente importante para o cinema e para a cultura nacional, porém o olhar em Barravento não deixa de ser esse olhar de superioridade para uma realidade longínqua para Rocha. 

Esta característica não é exatamente um demérito. De certo, a incerteza da câmera e a decupagem que esquece de valorizar as emoções de algumas personagens, incomoda mais na fruição. Além disso, as inconstâncias de personalidade do antagonista de Firmino também diminuem a qualidade do filme. O maior ponto qualitativo aqui é a edição de Nelson Pereira dos Santos, que fomenta a elaboração de sensações na plateia, aumentando a suspensão e a emoção das cenas.

Assim, Barravento é um clássico da filmografia brasileira e deve ser conferido, tanto por sua tentativa de colocar em destaque discussões políticas do período de forma direta e intensa, como pela sua historicidade, que mostra um pouco sobre as praias, a cultura e as crenças baianas. Poderia ser mais amarrado em seu roteiro e consciente em sua direção? Sim, porém não deixa de ser um título poderoso e imponente, que vale a pena de parar tudo para assistir.

Direção: Glauber Rocha

Elenco: Antonio Pitanga, Luiza Maranhão, Lucy de Carvalho

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