Elas na Tela: As mulheres de Estrelas Além do Tempo

A história, como conhecemos, é repleta de fatos camuflados e verdadeiros heróis escondidos. Construir um filme que se predispõe a rasgar cortinas é carregar uma responsabilidade séria.

1961. Imagine que, no cenário hostil da Guerra Fria, um time de três mulheres geniais, trabalhando no departamento de matemática da NASA, se tornou peça chave no sucesso estadunidense rumo ao espaço. Surpreendente? Pois bem, agora imagine que além de cientistas e geniais, essas mulheres fossem negras? Pareceria mais uma história para dar conta desse burburinho todo dos “politicamente corretos” que exigem representatividade de gênero e de cor, verdade? Rá, não!

Essa é a história real de Katherine Johnson, Dorothy Vaughn e Mary Jackson que, sob a direção de Theodore Melfi (que assina o roteiro junto a Allison Schroeder), chega aos cinemas brasileiros em 02 de fevereiro. Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures), baseado no livro homônimo de Margot Lee Shetterly, é sem dúvida um filme necessário e importante em tempos atuais. Somente por virar os holofotes para essas mulheres, cujos nomes nos foram ocultados por tanto tempo, esse drama-biográfico já merece reconhecimento – e o título original “Figuras Escondidas”, que perde força na tradução brasileira, já sugere isso. Pois é, mulheres colocaram os homens no espaço!

Uma menininha negra toma o centro da cena de abertura, em primeiro plano. Resolvendo um problema matemático, abisma colegas e  professor (negros) que ocupam o segundo plano. Na sequência seguinte, as três protagonistas aparecem em meio a uma estrada em um carro quebrado. Uma delas, deitada no chão com chave-de-fenda em mãos, conserta o problema mecânico. Pronto, é assim que a película se apresenta: uma história sobre mulheres que não são menos do que qualquer mulher pode ser.

A menininha é Katherine (Taraji P. Henson), viúva e mãe de três filhas, que, dividindo-se entre as responsabilidades pessoais e profissionais, encontra uma grande oportunidade ao ser convocada para ser o computador da operação, presidida pelo cientista Al Harison (Kevin Costner), que levaria o primeiro estadunidense ao espaço. Para se tornar a primeira engenheira da NASA, a determinada Mary Jackson (Janelle Monáeequilibra trabalho, família e uma segunda graduação em uma escola exclusiva para brancos, cujo acesso conquistou por meio de um recurso jurídico. Dorothy Vaughn (Octavia Spencer, disputando o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante) executa toda função e responsabilidade de coordenar a equipe de “computadores” da agência espacial, mas, por sua cor, o cargo oficialmente lhe é sempre negado.

Enfrentar todos os obstáculos de gênero e de cor é, ainda hoje, rotina árdua. Em tempos em que negros e brancos sequer compartilhavam espaços públicos, então, era quase sobre-humano. Mais do que protagonistas do filme, elas são protagonistas das próprias histórias, dos próprios destinos, da família, e ainda, do destino da nação em meio a uma luta além-terra. Merecem, portanto, uma obra à altura.

Narrativamente, o ritmo do filme flui bem – começando com a apresentação da rotina de cada uma das personagens, seguindo com seu desenvolvimento nas áreas específicas, nos desafios assumidos e consequentes vitórias. Porém, no desenrolar da história, a ênfase na dedicação e no patriotismo da NASA acaba disputando o foco central que deveria ser, propriamente, nas tais figuras escondidas (já que o patriotismo dos EUA sempre esteve bastante visível!). E é aqui o primeiro ponto em que o diretor pesa a mão e deslisa na proposta que vinha apresentando, gerando uma pulguinha atrás da orelha: este seria, no fim das contas, mais um daqueles filmes imperialistas? Outras questões, tratadas a seguir, podem compensar esse ponto, ainda que não o enterrem. 

Existe uma preocupação estética e narrativa no filme em dar conta de mostrar as mínimas e mais latentes opressões sofridas pela população negra, em especial as mulheres, e aqui a direção acerta em muitas escolhas. É angustiante, e até desesperador, acompanhar a saga diária de Katherine na ida ao banheiro, já que no prédio onde passa a trabalhar só havia espaços para brancos. A cena se repete no longa mais de uma vez, sem poupar esforços de reforçar a ação, gerando a ansiedade de quem passaria aquilo. E é necessário que se desperte essa sensação.  

Os enquadramentos sempre contemplam a segregação nos ambientes de trabalho, reforçando os olhares tortos, a presença estranha de uma negra em meio a um mar de homens brancos. O mesmo para os espaços dos negros, em que compartilham medos e alegrias. A determinação e coragem das personagens, que no geral tomam as rédias para se impor em muitas situações, são explícitas na obra. Estas e outras escolhas, como a construção dos aspectos históricos nos diálogos e na narrativa, fazem com este seja, a seu modo, um filme muito sensitivo e envolvente – principalmente se você for mulher e sentir na pele a desigualdade.

Falar sobre mulheres protagonizando filmes de alto orçamento não deixa de suscitar indagações e pontos de atenção importantes, principalmente quando elas ocupam alguma posição de relevância. As mulheres negras têm sido há longo tempo, nas artes no geral, hiperssexualizadas e objetificadas. É um perigo iminente para qualquer filme reproduzir isso, mas aqui nota-se um cuidado em não seguir nesse caminho. 

Por muito tempo, a sociedade patriarcal tenta impor a rivalidade entre as mulheres como algo culturalmente natural. O filme, sagazmente, se esquiva dessa armadilha e, ao contrário, evidencia a união e suporte mútuo entre as personagens. Mesmo na hostilidade das mulheres brancas em relação às negras, a rivalidade parece não ultrapassar as questões racistas – não que isso fosse bom, mas demonstra uma atenção em não entrar no jogo do patriarcado. E talvez estes pontos sejam reflexo de um roteiro assinado por uma mulher.

É interessante, justamente, como o filme retrata a relação entre as mulheres brancas e as negras, esses dois grupos historicamente oprimidos, mas que, apesar de pertencerem ao mesmo gênero, a condição da cor sempre as têm colocado em patamares desiguais de opressão, até os dias atuais.

Vívian (Kirsten Dunst) é o desenho real dessa hierarquia enraizada no imaginário das mulheres brancas, que se creem superior às negras. Ela, apesar de sentir na pele a diminuição e discriminação no trabalho, por ser mulher, não deixa de operar no mesmo caminho com Dorothy. E essa questão é tão forte que, ao comentar com Dorothy que não teria nada contra ela, esta responde “Eu sei que você provavelmente acredita nisso”. O racismo, na nossa cultura, é tão complexo que muitos de nós, de fato, acreditamos nisso.

A segunda pulguinha atrás da orelha começa a saltitar quando alguns elementos do roteiro parecem exagerar o heroísmo dos brancos, e é aqui o incômodo principal. É um tanto claro que, para que as protagonistas alcançassem o êxito, mesmo com todo empenho, foi necessário que os brancos fizessem certas concessões (sem querer, com esse afirmação, negar a autonomia da luta do povo negro). Nesta história em particular, o cientista Al Harrison defendeu os direitos de Katherine e, de certo modo, deu o devido reconhecimento a seu trabalho. Porém, o filme abusa da escolha de reiterar os olhares de surpresa dos cientistas brancos, acompanhados de musiquinhas instrumentais ao fundo, formato que acaba se tornando maçante.

Em certo momento, Harrison passa o bastão (um piloto de lousa, especificamente) para Katherine. Nada demais, exceto por essa passagem acontecer em um close (com musiquinha, claro!). Poucos minutos depois, em outro close, Vivian entrega a Dorothy a pasta em que recebe o título de coordenadora. Essas “passagens de bastões” (dos brancos aos negros) em primeiros planos são, sem dúvidas, desnecessárias.

A história ocultou suas identidades e nos privou do direito de conhecê-las, do direito de saber que (nós, mulheres) não cabemos em nenhum limite, em nenhum padrão ou em nenhum tipo de prisão que o patriarcado nos impõe e nos impôs sempre. Nós (as mulheres) levamos os homens para o espaço!

Assim, não dá pra negar que Estrelas Além do Tempo tem o mérito de uma obra de urgência, necessária, que traz à tona a voz, o pioneirismo e a importância dessas heroínas.  É muito forte vibrar a cada vitória delas. O filme retrata, ainda, muito bem a realidade hostil de poucas décadas atrás. Ainda que, no fundo, muitos aspectos do filme acabam se encaixando na máxima “filme para branco ver“, não chega ao ponto de ser um Histórias Cruzadas  no Espaço (como brincou a atriz Leslie Jones). Ele cumpre bem essa responsabilidade e não perde, de todo, a mão na representatividade e no cuidado com as personagens. Merece (e precisa) ser visto.

Assista ao trailer do filme: