É uma pena que Desafiando a Arte seja um desses filmes que teve como destino o limbo cinéfilo. Em tempos de extinção das videolocadoras e da ascensão dos serviços de streaming como o Netflix, o segundo longa-metragem de Jason Bateman (que havia dirigido e protagonizado Palavrões, já no catálogo Netflix) é lançado diretamente em DVD no Brasil, o que não significa muito. Ou seja, se ele fora lançado nos cinemas norte-americanos timidamente, encaixando-se no ingrato circuito de exibição do mês de abril, por aqui, pouca gente terá ciência da sua existência. O filme merece descoberto pois não só é melhor que o longa anterior de Bateman como diretor, como também um dos mais interessantes títulos norte-americanos lançados em 2016.
No longa, Bateman e Nicole Kidman (Terra Estranha) interpretam os irmãos Baxter e Annie Fang, um escritor e uma atriz que convivem com a sombra de seus pais Caleb e Camille (Christopher Walken e Maryann Plunkett), dois famosos artistas performáticos. Baxter e Annie faziam parte das intervenções e performances artísticas de rua dos seus pais quando crianças e agora têm que confrontar uma severa crise profissional já adultos. Tudo se agrava quando os progenitores são dados como desaparecidos e os irmãos têm que encontrar uma maneira de expurgar os seus próprios problemas.
Baseado no romance Caninos em Família do escritor Kevin Wilson, lançado no Brasil pela Companhia das Letras, Desafiando a Arte é um filme que tem como um dos seus temas centrais a busca por uma integridade artística. Entendendo a arte como agente transformador e vivo no mundo e a partir de ações e não de objetos estáticos e imutáveis, Desafiando a Arte traz como questão palpitante, despertada no acerto de contas entre Annie, Baxter e seus pais, o encontro da identidade pessoal e profissional dos seus protagonistas. Annie está em conflito com seu reconhecido trabalho como atriz do circuito indie de cinema, já Baxter vive os louros do seu livro “autobiográfico” com pouquíssima empolgação. Ambos estão inquietos com algo, mas não sabem exatamente com o que. Em meio às recordações das performances que faziam quando crianças sob as orientações dos pais passam a viver à sombra dos artistas que foram por influência dos mesmos, ao mesmo tempo em que não desejam retornar àquele lugar da infância. O conflito está instaurado na casa dos Fang.
Marcados por uma interseção muito forte entre a família e o próprio ofício desde pequenos, Annie e Baxter são peças fundamentais da maior obra-prima dos seus pais Caleb e Camille que, a partir do seu trabalho, conseguem exorcizar os filhos dos seus grandes conflitos, ainda que tudo isso seja às custas de muita dor. Em linhas gerais, Desafiando a Arte também trata da difícil tarefa de ser pai e mãe e a inegável influência que o repertório familiar tem em nossas vidas. Para Annie e Baxter, a convivência com artistas de vanguarda como Caleb e Camille ao mesmo tempo que foi definidora dos adultos que são, levando-os, inclusive, às suas escolhas profissionais, tornou-se um fardo pelo peso da responsabilidade de superá-los e de não repetir aquilo que consideraram como seus erros.
Conseguindo conduzir suas emoções de maneira orgânica e com nenhuma estridência, Jason Bateman traz o seu elenco em grandes momentos, sobretudo Nicole Kidman e Christopher Walken (Sete Psicopatas e um Shih Tzu). O roteiro de David Lindsay-Abaire (o mesmo que fora responsável por Reencontrando a Felicidade, que, assim como esse, era produção de Kidman) apresenta um equilíbrio pertinente entre sensibilidade, inteligência e humor. A estrutura do filme também é um ponto forte da obra lidando com elementos difíceis como o flashback e depoimentos dos personagens para um documentário de forma orgânica e auxiliado por uma composição primorosa de Carter Burwell, que faz da trilha do filme um recurso de potente carga emotiva, evocando a presença de Caleb e Camille na vida dos filhos e na própria obra, mesmo quando esses personagens não estão em cena.
Desafiando a Arte é um filme que leva ao pé da letra a máxima de que a arte é transformadora, questionadora, quebra paradigmas, transforma pela inquietação e por subverter a ordem das coisas, mas também um longa sobre a conciliação com nossos pais na vida adulta. Annie e Baxter tiveram que passar por maus bocados até entenderem que tudo o que Caleb e Camille queriam, muitas vezes de maneira contraditória e questionável para os filhos, era que seus descendentes se tornassem adultos preparados para a vida que queriam assumir. É tocante perceber, ao final do filme, como Caleb e Camille fizeram isso através da sua criação artística mais poderosa, que, na verdade, nem vem a ser a performance final do casal mas a própria criação dos filhos. Vida e arte são uma só.
Assista ao trailer do filme: