Em Terra de Ninguém (Badlands) — a estreia de Terrence Malick como diretor — o personagem de Martin Sheen passa a história fugindo das consequências de um único ato. O protagonista, um jovem inconsequente e rebelde, havia cometido um assassinato e não sabia nem muito bem o peso que carregava tal ação. Ou seja, o poder e a irreversibilidade em tirar a vida de alguém. Aquele jovem sedutor representava uma geração no pós-guerra que vivia perdida, sentia a necessidade de ser livre e que não entende muito bem o poder que ela carregava. Inicio a crítica de Uma Vida Oculta remetendo ao longa de 1973 justamente porque, apesar de protagonistas extremamente opostos, há similaridades nas duas obras.
No interior da Áustria, em 1939, Franz (August Diehl) é um agricultor que vive uma vida pacata com sua mulher (Valerie Pachner) e três filhas. Um dia, ele é chamado para servir sob o comando de Hitler e do Terceiro Reich. Convocado uma vez e tendo visto os horrores da guerra, ele afirma que, caso seja chamado de novo, se negará a fazer o juramento de lealdade ao ditador alemão. Quando isso acontece, Franz é preso por traição e tem a chance de se livrar da pena de morte ao ser ajudado por um advogado. Para isso, ele deveria fazer os votos que anteriormente havia negado. Todavia, ele reluta em agir contra seus valores.
Portanto, Uma Vida Oculta também é sobre encarar as consequências de sua própria decisão e de seguir até o fim com seus valores. Aqui, no caso, não se trata mais um espírito selvagem indomável, mas de um homem que acredita fielmente em seus valores religiosos e que ele não pode compactuar com a maldade. Desta vez, curioso que o que move a trama não é mais um ato (o assassinato em Terra de Ninguém), mas a abstenção em agir (o juramento de lealdade). O próprio advogado e o padre que aconselham Franz clamam para que ele diga aquelas palavras, já que serão jogadas ao vento. Contudo, a única coisa que parece importar para ele é estar bem consigo mesmo e de um julgamento divino.
Justamente por ser uma história tão conectada com a fé e que propõe um contato direto entre o homem e o divino, os artifícios malickianos nunca estiveram tão bem conectados com a temática de um de seus filmes quanto aqui. Boa parte das falas acontecem através da leitura de cartas entre Franz e sua mulher, por meio de narrações em off, e que reforçam uma intrínseca ligação entre amor e espiritualidade. Mesmo separados por uma grande distância e estando um deles preso, a força daquele amor é tão poderosa que é como se um ouvisse o outro por intermédio da fé. Aquela relação é tão pura que não reconhece barreiras. Não só isso, mas, através de contra-plongées e planos gerais, Malick cria um paradoxo, uma vez que ora Franz está imenso diante dos céus, ora está tão pequeno diante das forças da natureza, algo que reflete os sentimentos do personagem.
Tendo estudado Filosofia em Harvard, não me espanta que Malick traga aqui um filme que possa ser abordado através de diversas perspectivas dentro desta área. Dentre os olhares existentes, um daqueles possíveis sobre Uma Vida Oculta pode ser feito sob a ótica do Existencialismo Cristão de Kierkegaard. Para o filósofo, a relação do homem com o divino está acima de qualquer outra norma imposta pelo coletivo que vive. Assim, a pessoa deve se comprometer com uma escolha para agradar Deus e seguir até o fim, passando por uma enorme angústia antes de realizar o tal salto da fé.
Até por isso, justificam-se as três horas de duração e as sequências em que a mulher de Franz sofre repressão dos moradores locais. Tudo isso engrandece o sacrifício e torna ainda mais agonizante a escolha do protagonista. Voltando a Kierkegaard, não se trata mais de levar uma vida estética e que segue as convenções sociais — no caso, a aceitação do nazismo. Trata-se de se elevar ao plano ético — não faço porque não concordo. Consequentemente, chega-se ao plano religioso, no qual alcança a liberdade. Neste sentido, a atuação de August Diehl é fundamental. Mesmo com seu corpo sofrendo cada vez mais as consequências do encarceramento, ele consegue transmitir um nível de tranquilidade e convicção naquilo que acredita. Quanto mais seu corpo é preso, mais sua mente parece se salvar.
Se o personagem vivido por Martin Sheen em Terra de Ninguém foge de seus próprios atos até o fim do filme, em Uma Vida Oculta, Franz abraça eles desde o início. Enquanto um busca a liberdade mundana e carnal, o outro busca a salvação divina. Até por isso, não faz sentido fugir de seu destino na Terra. Algo que se assemelha nas duas obras é esta recusa em se adaptar ao sistema vigente no qual vivem e jamais sacrificando seus ideais. Para Franz, a salvação vem através de sua convicção do que é certo.
Ainda que muito tenha falado de Kierkegaard e o Existencialismo Cristão, a citação com que Malick decide trazer antes dos créditos também pode remeter ao Imperativo Categórico de Kant. Parafraseando George Eliot, a mensagem trazida é de que o bem crescente no mundo reside nos pequenos atos daqueles que viveram vidas ocultas. Uma visão individualista kantiana de que se todos fizerem aquilo que eles acreditam ser o certo, independente dos outros, poderíamos ter uma sociedade melhor.
Não à toa, ao final do filme, a Igreja está sendo pintada novamente, as pessoas voltaram a ser amigas e as plantações estão rendendo. Diante da ameaça nazi-fascista, o melhor modo de se combatê-la é através dos gestos individuais e dos pequenos sacrifícios. De bondade em bondade, os homens inspirarão uns aos outros a tomarem as mesmas atitudes. Assim, uma revolução partirá do micro pro macro. Não é a sociedade que salva o indivíduo, mas o indivíduo que salva a si próprio.
Direção: Terrence Malick
Elenco: August Diehl, Valerie Pachner, Michael Nyqvist, Jurgen Prochnow, Matthias Schoenaerts, Bruno Ganz, Martin Wuttke, Tobias Moretti, Alexander Fehling, Franz Rogowski
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