Serial Kelly

Crítica: Serial Kelly

2.5

No interior do nordeste brasileiro, uma cantora de bares no estilo “pé sujo” empreende uma série de assassinatos contra homens que, por algum motivo, em algum momento da sua vida, foram figuras opressoras na sua jornada pessoal e profissional. Com esse mote, o cineasta René Guerra (de Guigo offline) conta em Serial Kelly uma história com declarado mote político: desestabilizar o machismo e o classismo enraizado na crônica policial brasileira por autoridades e pela mídia sensacionalista.

Na pele da protagonista, Guerra conta com Gaby Amarantos, estreando como atriz no cinema com esse longa. Amarantos vive Kellyane de maneira bastante competente. Ela confere um ar empoderado a Kelly, mas não é algo que se autoproclama o tempo todo. Amarantos compõe uma espécie de justiceira, marcada por dores ainda muito expostas de uma vida nada fácil e que, por isso, age de forma tão fria nas relações interpessoais que estabelece ao longo da história.

Kelly não é aquela assassina marcada por alguma patologia de ordem psicológica como vemos em séries documentais true crime cuja explicação para o caráter doentio dos criminosos (na maior parte, homens brancos estadunidenses) costuma vincular-se com a própria ausência de sentido para seus atos, uma psicopatia, uma predisposição natural para a perversidade… Oportunamente, Guerra sublinha como a violência da personagem de Serial Kelly, uma mulher brasileira do nordeste, negra, é produto de uma sociedade repleta de problemas estruturais. O filme serve como revisão da história da nossa crônica policial, que personaliza eventos (e consequentemente externaliza preconceitos) e raras vezes se mostra produtiva na reflexão sobre a própria sociedade. Há momentos muito bons no tratamento dessa pauta por Serial Kelly. A delegada interpretada pela atriz Paula Cohen é peça fundamental desses momentos sendo a porta-voz da crítica da obra ao machismo, sobretudo na cena em que sua personagem é entrevistada por um apresentador de programa policial.

Serial Kelly

Apesar do mote certeiro para a construção da sua narrativa criminal, há problemas em Serial Kelly. O longa de René Guerra apresenta alguns entraves para a adesão mais direta do espectador com sua história. Serial Kelly é um filme que tem muita dificuldade para encontrar sua chave de comunicação com o público. O contexto da música brega solicita do realizador uma abordagem mais descontraída, que, inclusive, traga para a história da protagonista um pouco dos elementos musicais de sua vivência. Infelizmente, quando temas tão importantes são tratados nas telas – e Serial Kelly tem vários deles-, alguns realizadores costumam esvaziar traços mais populares que vinculem suas obras com o entretenimento, acreditando estariam sendo desrespeitosos com os temas que convocam, quando na verdade veriam suas obras alcançarem um público ainda mais amplo caso abraçassem de fato um verniz mais pop. Como em outros casos, Serial Kelly parece não compartilhar essa visão e segue com essa dissociação entre crítica social e entretenimento que prejudica um pouco a história.

Há momentos pontuais em que Guerra usa muito bem a música e o fato de ter como sua protagonista uma cantora (Gaby Amarantos), as apresentações de Kelly nos bares, claro, estão no topo dessas situações, mas há também o momento em que a protagonista canta para os policiais ao se entregar. O longa perde a oportunidade de flertar de maneira mais escancarada com o gênero musical, preferindo assumir sem grandes reservas uma atmosfera mais carregada e séria que ao invés de beneficiar sua história só a prejudica e a banaliza em um contexto de profusão de filmes que criticam o machismo estrutural do país.

O propósito de Serial Kelly é muito nobre. De maneira geral, a crítica social presente no filme se faz pertinente e bem transmitida. Entretanto, falta mais personalidade ao projeto, fica a sensação de que ele deveria abraçar sem as reservas que apresenta a veia popular da qual, indubitavelmente, quis se aproximar. O longa parece em diversos momentos ter vergonha de ir mais a fundo no universo da própria protagonista, a música, o que é uma pena. O longa ganharia mais caso aproveitasse a potência vocal da sua protagonista e assumisse sua vocação musical como recurso dramático e retórica no desenvolvimento da sua crítica social.

Direção: René Guerra

Elenco: Gaby Amarantos, Paula Cohen, Aline Marta Maia

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