Crítica: Okja

Vamos ser sinceros? A Netflix de fato promoveu uma revolução na produção de conteúdos seriados, tanto do ponto de vista do tipo de experiência espectatorial que propõe quanto artística e tecnicamente, mas no que diz respeito à produção original de filmes, as iniciativas foram constrangedoras. Fora Beasts of no Nation, nenhum dos longas encabeçados pela gigante dos streamings tiveram 1/10 do impacto cultural de algumas das suas séries mais famosas como House of CardsOrange is the New Black, a “falecida” Sense 8, a franquia Defensores da Marvel ou Stranger Things. Das comédias apelativas de Adam Sandler, passando por projetos insossos como Special Correspondents e War Machine, esse departamento da empresa tem rendido produtos desanimadores a seus assinantes. Eis que a Netflix empreende esforços para produzir Okja do sul-coreano Joon-Ho Bong (responsável pelos elogiados Expresso do AmanhãMother O Hospedeiro), o exibe em Cannes em meio a toda reticência do presidente do juri Pedro Almodóvar com produções feitas diretamente para o streaming e o resultado é dos mais animadores.

No longa, Tilda Swinton vive Lucy Mirando, uma executiva empreendedora de um projeto que visa a produção em larga escala de alimentos derivados de um nova espécie de superleitão supostamente encontrado no Chile. Segundo Mirando, o animal se reproduz por vias naturais e 26 deles são doados a fazendeiros de todo o mundo para que 10 anos depois possam participar de uma competição que visa escolher o melhor superleitão de todos. Claro que a empreitada tem um objetivo mais ganancioso, mas acontece que ela acaba afetando a garota Mija, interpretada por Seo-Hyun Ahn, e a “leitoazinha” Okja, que cresce junto com a menina. As duas vivem junto com o avô de Mija no topo de uma montanha na mais perfeita tranquilidade e cercada do melhor ambiente possível para Okja. Quando a leitoa é cobiçada pela companhia de Mirando, Mija e Okja acabam envolvidas no fogo cruzado entre a empresa e ativistas pró-defesa dos animais.

Com Okja, Joon-ho Bong concebe, ao mesmo tempo, uma jornada com escopo épico do resgate de Okja pela garota Mija e uma história com evidente e palpável posicionamento político a respeito da exploração de animais pela indústria alimentícia – e quer modifique os seus hábitos alimentares ou não, é uma preocupação legítima e merece o mínimo de reflexão. Bong faz isso pela ficção,  reverberando, inclusive, na escolha do realizador por conceber um animal fictício, podendo ser substituído por qualquer outro do nosso mundo real. Nas duas frentes que o realizador abre, Okja é certeiro. Como aventura protagonizada por Mija e sua leitoa, Okja rende uma sessão agradável que administra bem todos os possíveis efeitos que sua trama causa no espectador, uma cartela composta do riso às lágrimas mais sinceras. Como “fala” engajada em sua causa, Okja atinge seus objetivos com precisão, sem didatismo ou panfletarismo.

Tecnicamente, o longa é bem feito, sobretudo quando nos deparamos com a criação da própria leitoa que dá nome ao filme, um personagem feito por computação gráfica expressivo e capaz de inspirar dinâmicas de relacionamento complexas com a garota Mija. Isso é perceptível quando, por exemplo, logo no primeiro ato do filme, num gesto de altruísmo e de genuíno amor pela garota, Okja se sacrifica pela vida da sua “dona”. Ao mesmo tempo, Bong conta com atores que concebem composições interessantes e que vão da própria heroína da história Seo-Hyun Ahn a estrelas de primeira grandeza como Tilda Swinton e Jake Gyllenhaal. Contudo, o filme seria pouca coisa sem o olhar de Bong para a história e as decisões mínimas que toma ao longo do caminho, como o agradável primeiro ato no qual praticamente só acompanhamos o cotidiano de Mija e Okja, algo que serve para fortalecer a relação do espectador com o elo entre as personagens, ou a maneira como consegue conferir gravidade ao resgate da leitoa no abatedouro sem exagerar no tom.

Sendo um dos principais acertos entre os filmes originais da Netflix – talvez o maior acerto -, Okja é uma história cheia de pontos altos que tem muito a dizer sobre as questões que levanta. É imprevisível o impacto e alcance que terá, mas é certo que seu realizador encontra na sua obra, como fez em outros títulos de sua filmografia, um jeito colocar sua voz em sua história através do entretenimento. O mais recente trabalho de Joon-Ho Bong encontra uma impecável combinação entre a ênfase do seu discurso social e sua trama emocionalmente engajada. Em nós, Okja só inspira o desejo de que a Netflix invista mais em projetos desse tipo do que na enésima ofensa à humanidade em forma de comédia produzida e estrelada por Adam Sandler. Que venham mais Okjas.

Assista ao trailer do filme: