Em Ficção Americana, um escritor e professor de literatura entra em conflito com o contexto de produção e apreciação de obras literárias produzidas por afro-americanos. Tudo começa quando seu livro passa a ser taxado como um romance que “não é negro o suficiente” por não conter elementos que o público e as instâncias de consagração valorizam nas obras de autores negros. Em meio a toda essa crise profissional, o protagonista lida com alguns problemas na sua família, como um luto recente e o preconceito vivenciado pelo irmão que acaba de se divorciar após assumir-se gay.
Ficção Americana acerta com a sua crítica metalinguística. Os pontos que o filme pretende “atacar” a respeito da indústria criativa são pertinentes e muito bem pontuados pela obra. De fato é angustiante notar como artistas pertencentes a “minorias” sociais só conquistam qualquer tipo de consagração quando suas obras tematizam suas próprias mazelas: gays realizando romances LGBTs que tematizam a homofobia e destacam finais trágicos, mulheres contando histórias sobre a opressão causada pela misoginia e negros revisitando a escravidão em dramas históricos. Esse tipo de história costuma ser celebrada por críticos e lembradas em prêmios, como o Oscar, curiosamente, instância que reconheceu os méritos de Ficção Americana indicando-o a cinco categorias, entre elas, a de melhor filme.
Ficção Americana entende que o reconhecimento dessas obras surge como forma de expurgar a culpa de grupos privilegiados pelas opressões que historicamente causaram. É dessa forma que, por exemplo, uma comissão composta por três escritores brancos e dois negros elegem uma obra literária que tematiza a vida nos guetos americanos, entendendo-a como “importante”, mesmo que os dois representantes da “minoria” presentes na reunião apontem as falhas dessa obra. A reunião é encerrada com um solene e irônico “essas vozes precisam ser reconhecidas” depois que os escritores brancos desconsideram os alertas dos integrantes negros do grupo sobre os equívocos dessa obra no que tange a representatividade. O longa de Cord Jefferson abre esse importante vão de discussão a respeito de uma urgente necessidade de amadurecimento nessa discussão sobre representatividade na indústria criativa, algo que muitas vezes confina alguns artistas a estereótipos e demandas programadas por um único tipo de história e tratamento de personagens.
Tudo isso gera um conflito na história sobretudo porque não é esse tipo de narrativa que o protagonista deseja criar. As demandas da indústria para autores negros se contrapõem ao tipo de realidade que o interessa, o inspira e que lhe toma no seu cotidiano. A vida de Thelonious, personagem de Jeffrey Wright, é marcada por dramas banais do cotidiano de uma classe média e não pela realidade dos guetos.
As preocupações e angústias da comunidade artística afro-americana já não estão mais restritas à revisão de um passado marcado pela escravidão ou à luta intensa pelos direitos civis, ainda que ambas questões sigam trazendo ecos na existência contemporânea dessa população e mereçam lembrança constante (a própria discussão sobre a apreciação das obras literárias presente no filme indica isso). O problema é quando a capacidade produtiva desse grupo de artistas fica atrelado em exclusividade a essas possibilidades criativas, excluindo qualquer outro tipo de abordagem. O filme problematiza de forma bem pertinente esse atrito entre a indústria (ainda predominantemente branca, diga-se de passagem), demandando dos artistas o mesmo tipo de história, e o desejo que muitos deles nutrem de amadurecer um pouco mais as pautas ou mesmo de não se sentirem obrigados a levantá-las.
O grande problema de Ficção Americana é o invólucro que Cord Jefferson insere essa tão acertada crítica sobre as artes na contemporaneidade. O insight do filme sobre esse contexto é certeiro, o problema de Ficção Americana é a condução arrastada do diretor e roteirista para a história. Temos uma direção e um roteiro que levam tempo demais para chegar no cerne da história. Além disso, parte do humor do filme se dilui pela presença aborrecida e monocórdica de um protagonista que não gera muita comoção no público – propositadamente, é verdade, mas que inevitavelmente ressoa negativamente na apreciação da obra. Thelonious é uma figura ensimesmada, que não desperta torcida ou engajamento do espectador. Nesse sentido, resta aos personagens coadjuvantes garantir qualquer tipo de empatia no espectador, como é o caso da defensora pública e namorada do escritor vivida por Erika Alexander, além do irmão gay de Theolonious vivido por Sterling K. Brown. Uma pena que apesar da presença interessante de ambos seus personagens sejam desenvolvidos com uma certa superficialidade pelo roteiro – Brown sai levemente favorecido com algumas camadas de discussão a mais.
Ficção Americana é o típico caso do filme que apresenta boas ideias, a maior parte delas bem originais e produtivas para a reflexão da própria indústria. O grande problema é que o filme apresenta tudo a partir de uma condução que prejudica a experiência de assisti-lo. Não é um filme que engaja, não tem humor e não tem um protagonista que desperta grande empatia, elementos que prejudicam bastante a experiência do espectador.
Direção: Cord Jefferson
Elenco: Jeffrey Wright, Tracee Ellis Ross, John Ortiz
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