Acredito que um projeto audiovisual deva justificar sua existência, no sentido de garantir o seu propósito para com o público, especialmente quando se é um longa-metragem de indústria. Essa justificativa não precisa ser nada filosófica ou profunda, um filme pode simplesmente se justificar pelo propósito da diversão, do entretenimento. O que é difícil de engolir é um projeto que só existe por dinheiro e/ou hype. Tendo isso em mente, Coringa: Delírio a Dois é um ótimo exemplo do que Hollywood ama produzir: enlatados sem sentido ou propósito para arrecadar mais alguns milhões de dólares.
O filme é, do início ao fim, um desperdício de tempo e esforço criativo dos envolvidos. E, para agravar ainda mais a situação, a continuação ainda desmerece toda a força dialética do seu antecessor. É claro que a experiência do cinema é algo individual e de momento e essa insatisfação descrita pode parecer pessoal, mas vai além disso. Coringa: Delírio a Dois soa como uma explicação que ninguém pediu sobre o longa de 2019. A narrativa, que estreia nesta quinta-feira (3) nos cinemas brasileiros, apenas surfa na onda do sucesso que o primeiro projeto teve e vive com ajuda de aparelhos durante seus 138 minutos.
Nem mesmo a atuação oscarizada de Joaquin Phoenix (Coringa, de 2019) ou a presença magnética de Lady Gaga (Casa Gucci, de 2021) em cena como a Lee Quinzel são capazes de salvar esse navio afundando. Não há nada que sustente Coringa: Delírio a Dois e o justifique. A fotografia comandada por Lawrence Sher (Adão Negro, de 2022) e a arte, por Mark Friedberg (A Baleia, de 2022), são outros pontos altos na produção que também não conseguem sustentar um roteiro sofrível. Não existe um ponto da produção que não seja afetado por esse texto sem fôlego e força.
O retorno da co-escrita entre Scott Silver e Todd Phillips não teve os mesmos frutos que no longa de 2019. Dessa vez eles se perderam em sua própria história, numa missão suicida de fazer da sequência uma grande explicação para suas escolhas brilhantes do primeiro filme. Na época do lançamento do filme sobre o icônico vilão do Batman, muito se falou sobre os perigos da ‘mensagem’ do filme de Todd. Até mesmo a polícia ficou de prontidão em alguns cinemas com medo do projeto gerar reações extremas do públicos – coisa que não aconteceu. E parece que Coringa: Delírio a Dois veio como uma resposta à isso.
A sensação que fica ao final da sessão é que a continuação é um pedido de desculpa para todos que criticaram a suposta ‘mensagem’ de Coringa (2019). O texto nada mais é do que um mastigar do primeiro filme, com o claro objetivo de justificar cada uma das escolhas feitas para o antecessor, tornando Coringa: Delírio a Dois uma carta aberta que não deixa dúvidas sobre suas intenções. O que havia de narrativamente incendiário no primeiro longa se perde. O que teve de novidade ficou para trás. E o que resta ao público é uma enfadonha história que questiona a inteligência do espectador e que vive pelas migalhas do que foi Coringa.
Ironicamente, o que mais preocupava o público de uma forma geral era o enquadramento que Phillips daria às cenas musicais em Coringa: Delírio a Dois. Muito se especulou, criticou e questionou essa escolha, mas ela é uma das melhores feitas no novo filme. Diria até que é um dos poucos (se não o único) acerto de novidade trazida para o novo projeto. A música sempre foi um elenco presente no primeiro filme, que sempre esteve associado aos momentos de maior delírio do personagem-título. Tendo isso claro, é possível entender a progressão que é feita na sequência com a expansão desse elenco que já era vital.
Em Coringa: Delírio a Dois, a música se torna um elemento mais presente e vivo em cena. Além disso, a música demarca esse outro sentimento do personagem principal: o amor por sua parceira do crime. Ainda que no plano da imaginação, as cenas musicais entram como uma forma de visualização do que se passa na mente perturbada do personagem de Phoenix. Dos momentos astairianos aos lalalandianos, as cenas musicais do roteiro prestam uma homenagem à esse tipo de cinema hollywoodiano, ao mesmo tempo que criam um artifício narrativo interessantíssimo.
Para além de uma homenagem ao gênero cinematográfico, as cenas musicais também dizem respeito ao que se passa na mente de Arhtur Fleck. Do amor aos delírios de grandeza até chegar no medo da traição. Esse trânsito imaginativo composto pelas músicas consegue materializar um vislumbre do que havia de criativo e interesse no primeiro filme. Ele é capaz de compor uma complexidade em um roteiro tediosamente didático e verborrágico. Talvez, o último flash de esperança criativa em Coringa: Delírio a Dois esteja nessas cenas, que foram vastamente criticadas durante a produção do filme.
Para tristeza de muitos, a sequência será uma decepção. Desde seu lançamento no Festival de Veneza que o longa divide opiniões entre a crítica e deve seguir por esse caminho. Ainda assim, o fôlego desse filme não deve alcançar o do seu antecessor. O longa será uma surpresa para muitos. Surpreenderá com as cenas musicais fazendo sentido e sendo um respiro na mediocridade que rodeia o filme e, da mesma forma, surpreenderá por ser uma decepção tamanha por outros motivos que não essa escolha estética das músicas. A vida útil de Coringa: Delírio a Dois parece ter prazo de validade – e ele não deve estar longe de vencer.
Direção: Todd Phillips
Elenco: Joaquin Phoenix, Lady Gaga, Brendan Gleeson, Catherine Keener e Zazie Beetz
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