A Mão de Deus

Crítica: A Mão de Deus (Netflix)

3.5

Buscando retornar para as origens de sua infância em Nápoles, o diretor e roteirista Paolo Sorrentino convoca toda a atmosfera da classe média italiana dos anos 1970 para construir o universo de A Mão de Deus. Os tipos sociais são postos de maneira intensa e sem pudores. Durante a projeção o público encontra na história os arquétipos de homens brancos cis, como: o infiel, o que bate na esposa, o virgem atento aos corpos femininos, o trambiqueiro etc e, claro, todos eles são fanáticos por futebol.

Do outro lado, não seria diferente com as mulheres brancas cis, todas estão lá: a matrona, a musa, a viúva misteriosa, a mulher zelosa traída, a tia falastrona etc. Aos poucos, para completar esta espécie de checklist de obras como esta, todas estas figuras femininas vão progressivamente se tornando objetos centrais para o amadurecimento do protagonista, Fabietto (Fillipo Scotti). Elas impulsionam ele. Mas, o que são obras como esta? Para tratar sobre isso, é necessário notar toda a inspiração de Sorrentino em relação ao cinema italiano clássico.

Este fator está presente em sua filmografia intensamente, como em A Grande Beleza (2013) ou Juventude (2015). Provavelmente, a cinematografia da Itália fez parte do letramento de Sorrentino no audiovisual e isto aparece na tela o tempo inteiro. Seja na decupagem como nos próprios encaminhamentos narrativos, o autor convoca imagens e diálogos que remetem a longas-metragens como A Doce Vida ou Amarcord – somente para exemplificar, porque são diversas referências ali.

Nesta lógica, ele se entrega a um olhar antigo, de outra época, mesclando o que viu no ecrã, com o que escutou durante o início de sua vida, e não tem medo de trazer estas personagens que proferem frases terríveis e cometem atos pesados, pois ele parece estar mais interessado neste flerte do real com o absurdo. Para causar tal mescla, Sorrentino coloca estas personas em voga, em situações difíceis de fruir por esta ausência de filtro algum. O que pode deixar cada sequência de A Mão de Deus complicada de acompanhar.

E está tudo ali, desde o início da projeção, como no plot da musa de Fabietto, logo quando a mesma é apresentada. Patrizia, ao chegar em sua casa, é espancada pelo marido e chamada de louca. Quando os familiares vão até a sua residência parecem não incomodar com o seu nariz sangrando. Pelo contrário, Fabietto observa a sua “tia” com as vestes rasgadas e um seio para fora. Este quadro dura um tempo considerável e é como se Sorrentino enxergasse beleza em uma mulher com sangue na face e um peito amostra.

Há todo um apuro estético para aquela cena. O corpo exposto em quadro, com a mise-en-scène milimetricamente elaborada, quase como em um pintura. Patrizia não se importa em estar seminua na presença dos parentes de seu esposo, muito menos é perguntada sobre qual é seu estado. O que fica em voga, naquele instante, é o fato de Fabietto e seu pai estarem contemplado Patrizia, com o vestido rasgado. Um suprassumo do male gaze e, para algumas pessoas, um momento violento dentro da produção.

Outro momento destacável, neste aspecto é quando todos da família estão dentro mar. Uma das tias é caçoada por seu peso, sendo chamada de “baleia”, entre outros adjetivos dolorosos. Evidentemente, existe uma parte do público que é cúmplice deste tipo de discurso ou obra, sendo eles divididos em dois tipos: 1. O que não se fere com estes elementos e considera as pautas contemporâneas “mimimi”; 2. Os que justificam a presença da permanência de mal gosto e falta de empatia no cinema pelo fato de enredo se passar em outra época.

Todavia, ainda que A Mão de Deus se passe nos anos 1970, seu lançamento é 2021 e existem caminhos para imprimir a sordidez humana dentro da ficção sem ser conivente com ela ou fomentá-la. Mesmo que Paolo busque homenagear um cinema do passado, que possuiu, obviamente, todo seu esplendor em seu período, há de se pensar em como fazê-lo trazendo o discurso para o contexto atual. Assim, acompanhar a trama pode ser uma missão árdua para alguns.

No entanto, se algumas imagens e alguns diálogos são ofensivos, Sorrentino suaviza esta característica se valendo de absurdos costumeiros em dramas italianos, bem como do melodrama. Há a relação de Fabietto com algumas personagens masculinas, como com seu irmão Marchino (Marlon Joubert), que é posta com sensibilidade e cuidado; com Armando, seu amigo contrabandista, um alívio cômico e respiro dentro daquela lógica ou com o seu cineasta cultuado.

Estas relações são olhadas com mais respeito e dedicação por Paolo Sorrentino e são investigadas após um acontecimento dentro da história que acaba por fortalecer a qualidade geral de A Mão de Deus. Depois da virada da trama, quando Fabietto fica praticamente sozinho, a narrativa parece andar mais livremente. É aqui que o amor pelo audiovisual vai ganhando cada vez mais espaço na projeção e os sentimentos mais profundos de Fabietto também. Os problemas com o longa não estão ligados à qualidade técnica.

Pelo contrário! E é preciso apontar este tipo de observação, porque, em diversos momentos, a suposta genialidade ou mera inteligência de um diretor vira argumento para diminuir os desgostos vindos de roteiros ofensivos. Desta forma, é apontável que Sorrentino entrega uma direção atenta, com uma decupagem consciente de cada efeito que deseja ser passado. O tempo de cada plano e as movimentações de câmera trabalham à favor da narrativa, o que é essencial para o trabalho de um bom cineasta.

Já na escrita, Paolo demora de conduzir o público para onde ele quer. Com um primeiro ato arrastado, há uma preocupação em apresentar todas as personagens e ambientar quem assiste naquele mundo, porém a dinâmica presente na primeira parte da exibição é um tanto repetitiva e cansativa. A subida ocorre após sua metade, quando os conflitos e desenlaces vão ganhando contorno. Há também um olhar apurado da fotografia e da direção de arte, feitas, respectivamente, por Daria D’Antonio (Entre Tempos) e Saverio Sammali (Dois Papas).

As transformações inseridas na iluminação, nos posicionamentos dos objetos, nas seleções e nos usos das locações revelam todas as transições que Fabietto vive, nesta passagem da adolescência para a fase adulta. Os seus conflitos internos, medos e angústias são traduzidos imagética e esteticamente ali. Dito isto, A Mão de Deus é mais um título de um cineasta europeu, que com todos os seus privilégios de acesso ao conhecimento e a equipamentos reforça a mesma visão que já vem sendo posta a tantos anos.

Longe de diminuir o talento do realizador, que possui bastante apuro estético em suas obras, o que esta crítica deseja apontar é a recorrente dificuldade em finalizar sessões como essa, pois elas apresentam conteúdos com misoginia e gordofobia, por exemplo. Mas, para os mais antigos de mente e alma, talvez seja um deleite acompanhar os aventuras e perdas de Fabietto Schisa.

Direção: Paolo Sorrentino

Elenco: Filippo Scotti, Toni Servillo, Teresa Saponangelo

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