Crítica: A Garota Dinamarquesa

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Ficção salva pela realidade: Graças à interessante história de vida dos seus biografados, longa de Tom Hooper salva-se do completo fiasco.

 

A identidade de gênero é um tema que está na ordem do dia e talvez por isso mesmo somente agora a história de Lili Elbe, primeira transsexual a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo, finalmente tenha conseguido sair das páginas do livro de David Ebershoff e ganhar a tela grande nessa adaptação cinematográfica dirigida por Tom Hopper (O Discurso do Rei e Os Miseráveis) intitulada A Garota Dinamarquesa. Para quem não está por dentro da trajetória desse filme, ele foi durante anos um dos projetos mais desejados de Nicole Kidman, que queria não apenas estrelar o longa como Einar Wegener/Lili Elbe como produzir a obra, tendo Charlize Theron como sua colega de cena na pele de Gerda Wegener e o diretor Tomas Alfredson (Deixe Ela Entrar e O Espião que sabia Demais) na condução. A tentativa de financiamento do filme não deu certo e Kidman cedeu  a oportunidade para Tom Hooper e companhia subirem a bordo da delicada história por trás da transformação de Einar Wegener em Lili Elbe. O resultado não é dos mais satisfatórios, pois além de Hooper entregar um filme repleto de artificialidades e maneirismos, ainda não consegue lidar com um tema tão delicado quanto a identidade de gênero.

Para quem não está familiarizado com a trama do filme, A Garota Dinamarquesa conta a história real do pintor dinamarquês Einar Wegener que descobre sua identidade feminina quando começa a se vestir como mulher para que sua esposa Gerda Wegener pintasse os seus primeiros quadros. Ao transformar-se em Lili Elbe, Wegener torna-se a primeira transsexual a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo em uma época na qual o procedimento era extremamente arriscado e a transsexualidade começava a ser entendida pela medicina e pela psiquiatria em meio aos inerentes preconceitos sociais da sociedade da época, que, por sinal, não eram muito diferentes dos de hoje, apenas eram mais escancarados.

Atores: Eddie Redmayne e Alicia Vikander cumprem funções que não conseguem ser cumpridas pelo diretor e pela roteirista Lucinda Coxon.

 

A Garota Dinamarquesa é o tipo de filme que beneficia-se pela história dos personagens reais que biografa. Assim, ainda que a falta de traquejo de Tom Hooper com a câmera que era visível em O Discurso do Rei e Os Miseráveis (ângulos e movimentos aleatórios, por exemplo) persista em A Garota Dinamarquesa (em menor grau, é verdade), a admirável relação do casal Wegener e o pioneirismo de Lili Elbe em sua luta para simplesmente ser o que é se sobrepõem à própria obra cinematográfica. Assim, por mais que A Garota Dinamarquesa possua inúmeras falhas como peça cinematográfica, existe um personagem cuja história de vida está acima de qualquer filme e isso acaba engrandecendo de certa maneira o longa de Tom Hooper. Dessa forma, ainda que o diretor continue com uma direção de pouco pulso marcada por decisões nada inspiradas, apelando para um certo conservadorismo na maneira como aborda a história, e o roteiro explore muito menos do que deveria os meandros do conflito de identidade de gênero vivido por Einar/Lili, existe uma trama em pauta no momento e que pulsa sua urgência em ser conhecida que acaba colocando os equívocos estéticos e narrativos do filme no segundo plano.

Nesse sentido, é preciso reconhecer que o desempenho de Eddie Redmayne como Einar/Lili é fundamental para suprir as lacunas deixadas pelo roteiro e pela direção do longa. É a partir da interpretação de Redmayne que o público consegue ter uma dimensão do sofrimento de Lili Elbe por não encontrar uma resposta convincente a respeito do conflito de identidade que vive. Ao lado dele está Alicia Vikander que expõe para o público o outro lado da história, o da esposa de Einar/Lili, Gerda Wegener, que também vive o seu próprio conflito. Vikander interpreta com muita delicadeza uma mulher que vê gradualmente o homem que pensava conhecer desaparecer da sua vida para dar lugar a outra pessoa. Ainda assim, entre Lili e Gerda sobrevive o respeito e o amor que nutrem uma pela outra e Redmayne e Vikander conseguem conduzir tudo isso com muita delicadeza.

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Favorita: Alicia Vikander é apontada como candidata em potencial ao Oscar de melhor atriz coadjuvante ao viver a esposa da transsexual vivida por Eddie Redmayne.

 

Com todas as suas falhas e sua abordagem “quadradona” para um tema que merecia um pouco mais de profundidade e ousadia, A Garota Dinamarquesa tem sua “tábua de salvação” na rica e interessante relação dos seus personagens biografados. Ainda que mostre-se muito mais comedido em seus deslizes visuais do que em O Discurso do Rei e Os Miseráveis, Tom Hooper, ao lado da roteirista Lucinda Coxon, faz um filme que não faz jus por completo à história que o inspirou, restando aos atores Eddie Redmayne e Alicia Vikander suprirem as suas próprias faltas com a trama. Lili Elbe e Gerda Wegener mereciam um filme melhor, é verdade, mas A Garota Dinamarquesa expõe questões e vidas que são muito mais importantes do que o próprio cinema. E como é bom que histórias como as do casal Wegener sejam conhecidas cada vez mais pela sociedade. Ao menos esse serviço o filme faz.