Crítica: A Forma da Água

Normalmente, cineastas com larga reputação no cinema blockbuster como Steven Spielberg ou Christopher Nolan têm que fazer algumas “concessões” ou buscar novas chaves de comunicação com o público e preocupações temáticas em seus filmes para serem bem recepcionados no Oscar. Não estou fazendo esta observação com o intuito de alegar que filmes como A Lista de Schindler de 1993 (Spielberg) ou o recente Dunkirk (2017) tenham partido de movimentos calculados dos seus diretores, mas é fato amplamente conhecido que a Academia só costuma reconhecer esses cineastas quando eles saem do fantástico. Não foi o caso de Guillermo Del Toro com A Forma da Água. Ainda que o realizador de filmes como O Labirinto do FaunoA Espinha do Diabo Hellboy traga em seu novo filme referências ao cinema canonizado e flerte com alguns gêneros bem queridos pela Academia (drama, musical, espionagem, romance etc), del Toro não teve que realizar um movimento de 180º para fazer com que A Forma da Água conquistasse o número de indicações ao Oscar que conseguiu, 13 no total.

É certo que o filme “conversa” com preocupações do nosso tempo ao trazer pra dentro da sua história um evidente embate entre personagens oprimidos socialmente (uma muda, um homossexual, uma negra e um estrangeiro) contra um grande vilão americano. É um cinema da era Trump, como alguns têm dito. Contudo, também é louvável que del Toro consiga fazer isso com um tipo de cinema que sempre fez.  A Forma da Água funciona dentro dos termos no qual a obra do cineasta sempre operou, sendo até mais coerente com sua filmografia pregressa do que o blockbuster Círculo de Fogo que dirigiu em 2013, por exemplo. A Forma da Água recepciona elementos do horror, romance, conto de fadas, espionagem e musicais porque sua história centrada na relação entre uma faxineira muda de um laboratório americano e um monstro marinho acaba ocasionalmente solicitando elementos desses gêneros, como na cena em que a protagonista consegue expressar fantasiosamente seus sentimentos pela criatura através de um grande número musical da era de ouro de Hollywood ou no constante (e necessário) clima de conspiração propiciado por uma trama de espionagem da Guerra Fria que atravessa a história central do filme, e tudo é muito natural, orgânico… Ainda assim, é interessante notar como A Forma da Água tem semelhanças e sustentações muito sólidas na filmografia do seu próprio cineasta. O filme surge como um movimento natural na sua carreira, não como um desvio completo.

O filme se passa na década de 1960 e traz um grande e secreto laboratório americano que recebe em suas instalações uma criatura marinha objeto de estudos e experimentos do governo americano. Uma das faxineiras do local, a muda Elisa (Sally Hawkins, de Blue Jasmine), começa a se afeiçoar pela criatura e passa a estabelecer uma relação de muita cumplicidade com ela. Ao perceber que o monstro passa a ser vítima de maus tratos por homens mal intencionados, Elisa arquiteta um plano junto com seus amigos para tirar a criatura do laboratório e devolvê-la a seu habitat natural.

Sustentado na habilidade com que Guillermo del Toro transita entre a poesia cinematográfica e o bizarro universo dos seus personagens através da estranha hipótese de um relacionamento entre uma mulher e um monstro aquático, A Forma da Água é um longa capaz de oferecer ao espectador sensações muito díspares em questão de segundos. Trazendo como preocupação um olhar para excluídos sociais e a maneira que todos encontram de burlar os esquemas orquestrados por um vilão interpretado por Michael Shannon (Animais Noturnos), uma representação propositalmente estereotipada de um americano médio (machista, cheio de complexos e recalques), o longa de del Toro quer, no fundo, abordar o desejo que todos nós temos de sermos aceitos socialmente.

Os atores brilham nesse filme, talvez mais do que em nenhum outro exemplar da carreira de del Toro. Sally Hawkins consegue ser a alma do filme ao interpretar uma mulher que pela sua deficiência física e por conseguir se relacionar com pouquíssimas pessoas vive boa parte do tempo na solidão. Hawkins constrói um gradual desabrochar dessa heroína na medida em que a mesma se descobre como mulher e se sente parte do mundo ao encontrar alguém que se comunica como ela  – e como é interessante ver uma mulher como Hawkins, uma atriz bem distante do padrão de beleza hollywoodiano, ser sexualizada e não erotizada com o seu corpo nu em cena. A atriz tem ótimos coadjuvantes, como Richard Jenkins, que interpreta o melhor amigo da protagonista, um homossexual que enfrenta a dificuldade de se relacionar afetivamente na maturidade, a colega de trabalho vivida pela sempre divertida Octavia Spencer ou ainda o cientista infiltrado interpretado pelo versátil Michael Stuhlbarg.

Ao transitar pelas diversas possibilidades de comunicação da sua história, Guillermo del Toro pode até não fazer um filme perfeito, mas chega perto e conquista o espectador com uma jornada bem construída para a sua protagonista e com o desempenho exemplar do seu talentoso elenco. A Forma da Água é exemplo de como a fantasia tem muito a dizer sobre a realidade ao apontar para uma série de possíveis leituras contemporâneas da sociedade no nosso tempo. Numa época em que as pessoas parecem buscar uma involução da humanidade com uma crescente intolerância e violência (física e verbal), uma história sobre pessoas à margem da sociedade lutando contra os mecanismos ciclicamente criados para tolher direitos consegue encontrar uma potência comunicativa fora dos estratagemas do realismo. É mágica que nos conecta à realidade e nos faz olhar para aquilo que nos faz seres humanos: a capacidade de dar, acolher e retribuir afeto.

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