Existem certos filmes que vão além da sua própria existência enquanto obras de um determinado gênero e mostram a sua importância e relevância como tratado para a humanidade. Ainda é cedo para fazer qualquer afirmação sobre o lugar que 12 Anos de Escravidão ocupará para as próximas gerações, mas podemos arriscar o palpite de que o drama do inglês Steve McQueen é um doloroso e dilacerante testemunho para o espectador. Assim, o longa não é somente uma grande obra cinematográfica, mas um relato que cobra das plateias a tolerância a partir do relato em carne viva, ainda não cicatrizada, de um sobrevivente daquela que foi uma das maiores máculas da humanidade, a escravidão.
Dirigido com preciosismo por um Steve McQueen cada vez mais aguçado em sua sensibilidade, 12 Anos de Escravidão conta parte da vida de Solomon Northup, um escravo alforriado que retorna à sua antiga condição após ser sequestrado e enviado ao sul dos Estados Unidos. Northup tem sua identidade usurpada e passa 12 anos de sua vida servindo a senhores de fazenda e testemunhando os abusos destes com seus escravos. A oportunidade de libertação surge quando Northup conhece um abolicionista canadense que lhe permite fugir do seu “senhor” e denunciar os abusos cometidos contra seus companheiros.
Assim como fez em Shame, mas adaptando seu estilo à proposta desse novo projeto, Steve McQueen confere perspectivas inteligentes e originais em sua condução, sabendo dosar cenas que exigem cortes precisos com outras que priorizam longas sequências estáticas, todas condizentes com as situações envolvidas e com a ideia que pretende transmitir ao público. Como narrativa, McQueen faz de 12 Anos de Escravidão um filme duro e cru, sem apelar para a violência explícita (uma cena ou outra que é mais difícil de se assistir) e sem perder o elo emotivo com seu espectador. O roteiro da produção também merece o devido reconhecimento por saber quando é pertinente a existência de diálogos e quando o filme deve ser sustentado por sua linguagem visual, trazendo para o projeto uma consciência cinematográfica que poucos trabalhos dessa temporada possuem.
12 Anos de Escravidão também tem como um dos principais recursos para o seu êxito o intenso e dedicado trabalho do seu elenco. Chiwetel Ejiofor traz para o protagonista uma composição primorosa que mescla momentos de austeridade e contenção com reações de profunda dor e ressentimento. Através dos olhos do ator, as emoções de Solomon Northup são evidentes, ainda que suas ações sugiram uma postura conformista ou passiva demais. Outro desempenho brilhante na fita é o da novata Lupita Nyong’o, intérprete de Patsey, escrava que é forçada a ter relações sexuais com o seu senhor, vivido por Michael Fassbender. Nyong’o é tão delicada e sensível em sua participação no longa que as poucas cenas que tem destaque a transformam em um dos maiores elos emotivos entre espectador e obra. Há ainda ótimos desempenhos do próprio Fassbender, Sarah Paulson – excepcional como sua esposa rancorosa – , Paul Giamatti, Paul Dano e Benedict Cumberbatch. Enfim, um melhor que o outro.
A coragem de 12 Anos de Escravidão não está somente na forma com que toca em uma das feridas abertas da sociedade norte-americana, poucas vezes explorada em sua filmografia (até mesmo o Holocausto é mais frequente), mas na veemência com que aborda a temática. Uma veemência que não precisa ser sensacionalista ou panfletária para se mostrar efetiva e atingir em cheio a consciência da sua própria plateia, mas uma veemência sustentada na sensibilidade de um cineasta atento à sua própria linguagem e que não mede esforços para transformar seu filme em um relato humano e não apenas em mais um capítulo da sua ascendente carreira.