De fato, existe uma urgência em discutir sobre a violência que mulheres sofrem vindas de seus parceiros e da sociedade também. Neste sentido, Anna Muylaert (Mãe só há uma) parece estar atenta às pautas que rondam o mundo contemporâneo.
No entanto, entre um desejo artificial de causar impacto e um distanciamento nítido da realidade que ela está abordando, seu novo filme, A Melhor mãe do mundo, peca pela ausência de camadas.
É bem verdade que Muylaert sabe escrever roteiros que criam um laço do espectador com suas protagonistas (vide Que horas ela volta? e Durval Discos), através de sequências inicias que a colocam como uma mulher que ama seus filhos e tem coragem de denunciar o seu parceiro.
Isso tudo em poucos minutos de exibição. Além disso, é notável o esforço de Shirley Cruz (Alfazema) em dar vida à Gal de maneira consciente, palpável e sensível.
Há um cuidado de Cruz em construir um papel que mescla fisicalidade corporal e intenções de falas, que aproximam Gal de quem assiste. Essa é uma mulher forte, sofrida, alegre, mas machucada.
Por conseguir imprimir essa diversidade de emoções na personagem, Shirley entrega para cena uma mulher que poderia ser próxima do público – uma mãe, uma tia, uma melhor amiga.
Mas, é nessa tentativa de expressar um realismo/naturalismo que a encenação se afasta desta organicidade, que parece ser a busca central da equipe. A começar pelas improvisações desesperadas.
É um tanto perceptível o desejo de Muylaert de tornar o que para ela soa como exótico e longínquo em “natural”. Por isso, ela explora a relação do elenco em si, extra ficção, para compor suas cenas.
Todavia, há uma despersonalização da narrativa nestes momentos. Quem assiste pode perceber consciente ou inconscientemente que as sequências estão descoladas da trama original.
Ao mesmo tempo, o elenco se esforça demais para esse intento, o que elabora uma artificilidade. Seja em gestos exagerados, risos ou falas que quebram com a lógica textual do roteiro original, o tom está sempre acima. Ainda há o fato de que o longas-metragem parece muito mais uma junção de processos do que de cenas prontas.
Na equipe de arte, essa sensação se confirma. Os objetos de cena, os figurinos, a cenografia e escolhas de locações parecem higienizadas. É como se fosse uma emulação de uma pobreza, mas com verniz.
Há um distanciamento intenso e até mesmo o lixo cênico é super produzido. Por exemplo, há muito mais plásticos e papelões do que resíduos orgânicos. Assim, salta da tela essa necessidade de mostrar, que sufoca a organicidade.
E esse é apenas um ponto de incômodo com a produção. O segundo elemento que deixa uma sensação ruim tem a ver com a representação de corpos negros no cinema brasileiro, na perspectiva de diretores e roteiristas brancos.
Com certeza existem homens pretos que oprimem mulheres pretas. Com certeza, o feminicídio é muito mais intenso para mulheres negras. Mas, a representação do casal central, seja da protagonista Gal, ou do seu antagonista Leandro (Seu Jorge), deixa um nó na garganta.
Para além do óbvio, que é o fato de que, na maioria das vezes, as representações de mulheres negras vêm nesse lugar de dor e dos homens nessa esfera da sexualização e/ou violência, a sessão se torna difícil por não haver uma tentativa de explorar outras camadas destes papéis, principalmente de Leandro.
Aqui, pelo menos Gal tem um desfecho que mostra a possibilidade dela ser feliz. Leandro não tem escapatória. Ele é posto como o homem alcoólatra, violento, opressor e existe essa categoria de pessoas.
Todavia, em um país no qual o genocídio da população negra masculina é altíssimo, é preciso repensar as representações destes homens em todo e qualquer produto midiático.
Talvez, se Leandro fosse branco e/ou existisse um homem negro bacana na obra para contrabalancear, já ajudaria bastante com esse engasgo. Isto porque, realmente, Leandro precisa estar no local do antagonista e em um longa de agenda como este, ficaria árduo criar um espaço para uma suavidade de Leandro.
Ainda assim, é preciso louvar a coragem de Anna e sua equipe. Esta não é uma produção fácil. O filme contém um número grande de externas, com elementos de luz e enquadramento que elevam a dificuldade da encenação.
O tema também é extremamente delicado e pode provocar inúmeros gatilhos em quem assiste. Contudo, de uma maneira geral, o que dizer de A melhor mãe do mundo em termos de veredito? Sem dúvidas, esta é uma produção importante de ser consumida, porque abre e desenvolve um debate relevante.
Enquanto linguagem, falta um uso maior da técnica para requintar o longa. Por enquanto, Muylaert parece ter perdido o seu apuro estético em alguma gaveta do passado. Mesmo assim, a cineasta permanece ousada, tanto por ir muito além de sua experiência de vida, quanto pelo fato de escolher trabalhar em uma realização com um valor alto de produção.
No final da sessão, quem assiste pode não amar o que viu durante a projeção, porém terá algumas cenas marcantes para a sua fruição e poderá também refletir sobre questões sociais. Aqui, tem-se potencial, mas muitos detalhes que ficam no meio do caminho.
Direção: Anna Muylaert
Elenco: Shirley Cruz, Seu Jorge, Luedji Luna
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