Administrar as demandas naturais impostas a um projeto financiado por um estúdio sempre será um desafio a qualquer realizador que pretenda manter-se fiel a sua linha autoral de produção. No entanto, determinadas concessões acabam sendo necessárias no intuito de levar para as telas tramas que inevitavelmente requererão maior injeção financeira. Após trabalhos cultuados por seu vigor e frescor autoral como Requiem para um Sonho, O Lutador e Cisne Negro, o cineasta Darren Aronofsky levou para as telas a sua adaptação da passagem bíblica da Arca de Noé, batizada apenas com o nome do seu protagonista, Noé. Lógico, o diretor passou por turbulências internas na Paramount, que levou o orçamento da produção a estimados US$ 125 milhões, e entre cortes e adiamentos da estreia, conseguiu levar seu ambicioso projeto para as telas em 2014.
Visualmente, Noé não é o desbunde que poderia ser. Aliás, esse nem é o ponto nevrálgico da obra, os elementos cênicos e visuais estão ali apenas para localizar o espectador e ilustrar determinadas intenções. O que interessa a Aronofsky é, mais uma vez, testar a própria consciência do espectador, um exercício que já mostrou-se eficiente ao extremo em seus filmes anteriores. No caso de Noé, ele utiliza uma passagem bíblica, sem com isso realizar um filme com inclinações religiosas ou contestações dogmáticas diretas, para criar uma trama amarrada, que explora e testa ao máximo os elementos psicológicos de seus personagens e oferece muito mais questionamentos que respostas sobre suas principais questões: entre elas, os limites das crenças e a fé na humanidade (o homem é essencialmente bom ou ruim?).
A trama é a conhecida de todos. Noé recebe sinais do Criador de que o mundo está para ser destruído por um dilúvio como uma forma de castigo para o mal que o homem causou na Terra desde que Adão e Eva sucumbiram à tentação. Com a consciência do fim da humanidade, Noé tem a missão de reunir as formas de vida não humanas em uma arca para perpetuarem suas espécies nesse novo Paraíso que será formado após o dilúvio. A iniciativa de Noé começa a despertar a ira de alguns homens que arquitetam um plano para sabotar a arca. Além dessa ameaça, o personagem tem que lidar com conflitos familiares que surgem em decorrência de sua devoção irrestrita a essa missão.
Convertido fora dos Estados Unidos em um 3D que sinceramente não faz a menor diferença em termos narrativos, Noé é mais um trabalho exemplar de Aronofsky que demonstra toda sua personalidade criativa, fazendo prevalecer sua assinatura em meio a tantas forças que poderiam enfraquecer sua visão sobre essa história. O que se vê na tela é mais um filme da excelente filmografia de um diretor sempre preocupado com as construções psicológicas de seus protagonistas, proporcionando estudos de personagem desafiadores. No caso em questão, acompanhamos Noé, interpretado com a usual intensidade de um Russell Crowe em plena forma dramática, tensionando suas convicções (a fé no Criador e na missão que lhe foi dada) e seus sentimentos (o amor pela sua esposa e por seus filhos), levando a um estágio de loucura gradativo. Assim como fez com Sara, Marion e Harry em Requiem para um Sonho ou Nina Sayers em Cisne Negro, em Noé, o diretor investe no terceiro ato do longa, conferindo como poucos uma tensão que beira o lisérgico, desafiando não só o seu protagonista, mas os nervos da plateia ao extremo. Aronofsky retorna ainda a trabalhar com Jennifer Connelly, excelente como a esposa de Noé, um contraponto em sensatez ao marido, e extrai ótimas performances de Anthony Hopkins como Matusalém e Ray Winstone como Tubal-cain, vilão do longa.
Como todo exemplar da filmografia do realizador, Noé não é um filme de fácil digestão e gerará incômodos por sua estrutura e abordagem narrativa ocasionalmente dispersa e constantemente incisiva. O que é bom sinal, mostra que mesmo inserindo-se na dinâmica produtiva de um estúdio, Darren Aronofsky abriu poucas concessões criativas em seu filme para as orientações de produtores. Provocador e questionador, como sempre, o diretor realizou com Noé um longa que não está nos cinemas ao acaso para oferecer perspectivas contemplativas ou consoladoras sobre a vida ou sobre seus personagens. Não há um retrato sobre um herói bíblico convicto e inspirador em seus valores, mas um homem falho e levado ao extremo por suas convicções. Não poderíamos esperar outra coisa de um diretor tão enérgico quanto Darren Aronofsky.