Em um pouco mais de uma hora de projeção, o espectador é convidado a mergulhar em uma história sobre amor e revolução em Ultravioleta e a Gangue das Cuspidoras de Sangue. No início do século XX, Marcelle e Emma se conhecem em um colégio. Nesta época também, foi quando a França sofre um surto intenso de tuberculose, que se alastrava pelo país. Marcelle contrai a doença e, em um sanatório, forma uma gangue de meninas enfermas, porém cheias de vontades e desejos.
Somente pela premissa, o documentário desperta interesse e curiosidade. No entanto, ele possui diversas camadas, que fomentam a sua qualidade técnica e histórica. Emma, na realidade, é avó de Robin Hunzinger (Vers la forêt de nuages), diretor da obra. Quando ela faleceu, Robin e sua mãe – Claudie Hunzinger, que escreveu o roteiro junto com seu filho – encontraram cartas antigas trocadas por Marcelle e Emma.
A intimidade devido à proximidade com uma das figuras centrais do filme, mescladas com o distanciamento causado pela falta de conhecimento sobre esta relação é um dos maiores ganhos deste longa-metragem. Isto porque ao mesmo tempo em que a produção conta o que ocorreu com Emma, Marcelle e sua gangue, ela parece investigar e analisar as relações construídas por estas mulheres.
Boa parte desta característica se dá pela narração, que em seu texto e interpretação constrói uma mistura sagaz de reconstituição dos fatos e um quê de ficção. Intercalando trechos das missivas trocadas pelas duas garotas e reflexões sobre este passado, o público vai criando uma proximidade e certa intimidade com aquele enredo, com aquelas vivências.
É nesta lógica que se expande a sensibilidade e a inteligência presentes no roteiro e na direção do longa. É possível compreender em cada relato e em cada pensamento sobre ele o quanto havia amor entre Marcelle e Emma, mas também todos os receios das jovens, sendo de um lado, o medo da perda, da morte, do abando e, do outro, a preocupação com o mundo e com as aparências.
Existem aqui muito mais palavras de Marcelle do que de Emma, mas o silêncio da avó de Hunzinger também diz bastante sobre o relacionamento deste casal, interrompido por uma doença que marcou tanto um período. Contudo, este é um doc que vai além das aflições e ligações de duas apaixonadas e é notável toda a intensidade de Marcelle e como ela estabelece seu grupo de enfermas dentro do sanatório, com objetivo de romper com os seus conflitos internos e de afastar a solidão.
Estas integrantes ganham vida não apenas pela voz que narra as suas trajetórias, mas também por imagens que saltam na tela. Aqui, vê-se outro elemento constitutivo de Ultravioleta: a presença e o uso das imagens de arquivo. Para ilustrar e fazer com que quem acompanha a sessão possa visualizar estas meninas, suas emoções e locais que ocupavam, a equipe convoca sequências de outros filmes, fotografias e filmagens antigas.
Assim, encontram-se mulheres dos anos 1920/1930, em atividades comuns ou não, bem como, por exemplo, cenas de Tramas do Entardecer, de Maya Deren. A estratégia, além de criativa, tem um efeito intenso de dar vida e movimento para uma escrita de um outrora tão longínquo. É nesta junção de narração com imagens representativas que se elabora esta intimidade com as personagens. E é por esta razão que o filme provoca esta sensação de presença do ficcional.
Porque é através desta sobreposição de recurso, que uma narrativa de início, meio e fim é criada, pensando no formato clássico. Desta maneira, Ultravioleta e a Gangue das Cuspidoras de Sangue apresenta um resultado geral equilibrado, conseguindo dinamizar um material, teoricamente, simples em seu formato – mas, tão profundo em seu conteúdo –, criando pontos de construção de progressão, com clímax, desenlace e imprimindo no texto verbal um colorido tonal que cobre as imagens em preto e branco. Este é um trabalho forte e apaixonante!
Direção: Robin Hunzinger
Confira todas as nossas críticas de Festivais clicando aqui!