Diversos elementos técnicos e discursivos perpassam a construção narrativa de Porto Príncipe, longa-metragem de Maria Emília de Azevedo. Todavia, há um foco central que confere a maior qualidade do filme: a amizade entre as personagens centrais da obra. Ainda que existam pontos que poderiam ser melhor desenvolvidos, a conexão entre os atores Selma Egrei e Diderot Senat é bem construída, tanto na dinâmica de contracena quanto no próprio trabalho de Maria Emília.
Quando Selma e Diderot estão em cena juntos, a câmera permanece parada, em um enquadramento médio, na maioria das vezes, fazendo com que as sequências da dupla ganhem uma movimentação metafórica. São nos diálogos que as personagens Bertha e Bastide revelam suas forças e fragilidades. Os intérpretes parecem improvisar os silêncios, os sorrisos, as pausas. É emocionante ver o jogo criado pela dupla, que não tem pressa para investigar e demonstrar as emoções de seus papéis.
Maria Emília ao notar esta dinâmica bonita, vinda de seus atores, deixa que a sua criação esteja completamente voltada para a narrativa. Ao lado do fotógrafo Marx Vamerlatti, a cineasta elabora camadas imagéticas, que expressam os sentimentos e pensamentos das figuras principais da história, como nas transições de estado das personagens. As sombras vão se dissipando e a tela ficando cada vez mais iluminada, mudando o estado da vida de Bertha e Bastide, que crescem em suas jornadas, ganhando mais liberdade e confiança para alcançar seus sonhos.
Além deste particular e íntimo das relações humanas, que são investigados a partir desta amizade, o roteiro de Marcelo Esteves não deixa de explorar questões políticas e sociais. Bastide é um homem haitiano, um homem negro e imigrante, que vai morar em Santa Catarina. Assim, o enredo traz o racismo e o elitismo deste Estado, que se vê superior por ter descendentes de alemães, revelando todo o fascismo e comportamento hipócrita de uma região.
O filho de Bertha é quem mais representa este tipo de gente, que vem com uma postura de protetor da família, apenas para não escancarar o preconceito e a atitude criminosa perante os negros. Mas, tanto na escrita quanto na mise-en-scène, é notável a articulação e a movimentação deste branco sulista para oprimir, com falas violentas, tanto a sua mãe, por ser mulher, quanto Bastide, por ser estrangeiro e um rapaz preto. Talvez, a discussão pudesse ser um pouco mais firme, mais corajosa, porque ela se esvai e não toma um desfecho direto. Fica mais pelo não dito.
Bastide também demora demasiadamente de se impor. Somente a partir da virada da trama, quando ele e Bertha brigam é que o escutamos proferir tudo que foi um incômodo na postura de Bertha, durante a sessão inteira. A postura dela de white savior e a permissividade dada ao seu filho é angustiante. Este comportamento da personagem serve para criar sua complexidade, porém a produção cresceria se o olhar crítico de Bastide estivesse presente na obra desde o começo.
Além disso, depois da discussão entre os dois, existe uma sequência muito forte vivida por Bastide. Todavia, uma grande elipse temporal é criada, apagando todo o conflito que foi estabelecido progressivamente na exibição. A resolução do maior nó do longa é dada de forma tão fácil, que parece um ausência de habilidade em trabalhar o próprio conteúdo criado pela equipe. Há esta quebra de expectativa, que compromete um tanto do resultado geral aqui.
Ainda assim, Porto Príncipe vale por encantar com sua estética, que mescla o particular e o universal, por apresentar intérpretes carismáticos e talentosos e por deixar uma sensação de que é sempre possível recomeçar, em uma nova terra, em qualquer idade ou circunstância. O filme não traz uma fala “polianesca” sobre o enfrentamento das dificuldades, mas apresenta um tom de renovação e força, que deixam os olhos marejados, ao final da projeção.
Direção: Maria Emília de Azevedo
Elenco: Selma Egrei, Diderot Senat, Léo Franco
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