Em uma Paris sem o glamour e o cheiro de um café à beira do Sena, a realidade dos imigrantes no subúrbio segue apartada do sonho da bonne vie europeia. E é na cidade marginal que as melhores amigas Dounia e Maimouna sonham com uma vida de luxo e dinheiro. “Money, Money, Money!”, brinca a protagonista Dounia, resume as aspirações de uma juventude esquecida, em um pátria que não lhes acolhe, mas que anseia existir e quer fazê-lo como o próprio sistema ensina. Divinas é um desses filmes que fazem bonito na representatividade, sabendo dosar bem realidade com poesia e sensibilidade.
O drama francês (franco-qatariano), vencedor do Câmera de Ouro no Festival de Cannes em 2016, é dirigido por Houda Benyamina e distribuído mundo afora pela Netflix. As duas jovens, sem muita perspectiva ou esperanças de alcançar o sonho no fluxo do sistema, tomam a contramão e partem em busca do dinheiro fácil, envolvendo-se com uma traficante local. Senhoras de si e decididas em buscar seu lugar no mundo, parecem não dimensionar o perigo de suas ações, mas o fazem com segurança, conduzindo assim uma história que cresce com êxito.
Enquanto Dounia (Oulaya Amamra) é uma jovem sem referência familiar minimamente sã, que vive com a mãe cheia de vícios e a quem ela cuida como filha, Maimouna (Déborah Lukumuena), no seio de uma família muçulmana, religiosa e protetora, acredita que Deus está olhando todos os seus pecados. São incompreendidas pelas instituições e parece que nenhum lugar lhes cabe: a escola as conduz aos bancos de empregados (com o curso para ser recepcionista), a igreja e a política lhes são hostis, não se identificam com a família e até o tráfico as menospreza.
Incompreendidas, mas não inocentes! O filme não tem espaço para maniqueísmos. Nem “boas”, nem “más” (ou “nem princesas, nem bruxinhas”), as meninas são o que o são: jovens que guardam a alegria e a euforia da adolescência, tentando equilibrar-se entre sonhos ingênuos e a dura realidade a se enfrentar, escolhem o crime porque é o mais fácil e têm ciência disso. Maimouna, por exemplo, conta que sonha com Deus castigando-a, o que não a impede de seguir no crime.
O filme foge dos estereótipos convencionais sem precisar operar na direção oposta, como quando se retira toda feminilidade das personagens para mostrar “mulheres fortes”, ou quando se recusa cuidado poético e estético com a obra para imprimir realismo. E esse é talvez um dos seus pontos mais fortes: inverter os clichês com muita maturidade e sensibilidade.
Comecemos, então, pela cereja do bolo: Esta é uma obra importante de representação e, à sua forma particular, de empoderamento feminino. Empoderamento justamente por sua dimensão representativa e pelas inversões de papéis, que, com muita sutileza, costuram o filme. Primeiro, as mulheres são centrais, não só pelo protagonismo, mas pela condução das ações e pela tomada de decisões, sempre tendo como guia os seus próprios interesses, suas próprias paixões.
Não há um homem como motivo, como prêmio, como mestre. Nos diálogos e nas ações, os homens são secundários. Aliás, eles são secundários em toda narrativa. Há um olhar claramente preocupado com a representação feminina em todos os aspectos, desde a escolha de enquadramentos à caracterização física das personagens. A direção à cargo de Houda imprime sem dúvidas esse olhar.
As mulheres são fortes porque são reais. Elas são líderes, comandam a casa, ou o tráfico, e são também vaidosas, sonhadoras, sensuais (e sexuais!). São fortes fisicamente, como quando Dounia parte para a briga com um traficante, de igual para igual. Rebecca (Jisca Kalvanda), a líder do tráfico e referência de sucesso no “submundo”, é talvez o melhor exemplo dessa inversão: durona, com cicatrizes no rosto, cabelo raspado, é heterossexual e com parceiros à disposição. Não seria um problema ela ser homossexual, mas é um problema estigmatizar as lésbicas como sempre masculinizadas, assim como é um problema que todas as “mulheres fortes” sejam lésbicas (já que as lésbicas são sempre masculinas, e aí vamos caminhando para o falocentrismo sem fim).
O sutil “Você tem clitóris!”, que Rebecca diz sobre a coragem de Dounia, vem para enterrar de vez o clássico “você tem bolas!”, levando junto o patriarcado.
O personagem do segurança, que busca na dança e na arte uma forma de libertar-se, é também um elemento interessante na narrativa. Ele é um homem representando a sensibilidade da arte, do corpo, é o seu corpo o que a câmera percorre e que a fotografia destaca. E é Dounia quem o observa.
As escolhas técnica são certeiras em construir as sutilezas das personagens. A cena em que as meninas imaginam estar andando em uma Ferrari é uma das mais belas: em um travelling, temos o contraste do ambiente com as expressões de alegria e inocência em primeiro plano, junto à narração excitada de Dounia. As câmeras subjetivas, como imagens de snapchats, tornam a obra ainda mais real e atual. A presença de atores estreantes, como a Déborah Lukumuena, mostra esse cuidado.
Com um roteiro forte, sólido e imponente, mas sem deixar de ser sutil e delicado, Divinas (Divine) é um filme jovem e rebelde, que sabe muito bem onde está pisando. Mérito que sem dúvida é reflexo da direção de uma mulher jovem e franco-marroquina que conhece muito a realidade que insere na narrativa e, principalmente, respeita suas personagens. Houda Benyamina poderia ter caído fácil no terreno comum da temática suburbana e criminal, com homens dominando o tráfico e mulheres vendendo o corpo (o que, para muitos diretores, parece ser a única possibilidade lógica), mas suas escolhas, junto ao olhar que emprega à construção da trama, fazem deste um filme precioso.
O timing do filme é certo, pela a urgência de temas tão atuais, tão reais e tão próximo, mas que nos escapa tão fácil: tanto pelos milhares de imigrantes que aportam diariamente na Europa, quanto pela rotina de vermos mulheres sempre hiperssexualizadas e submissas, enfraquecidas. Ainda que o cinema seja arte e que nem sempre é possível cobrar demasiado a ação política na arte, algumas escolhas às vezes o exigem.
Assista ao trailer do filme: