Spree

Crítica: Spree (HBO Max)

3.5

O mundo hiperconectado da multiplicidade de telas e as consequências psicológicas da lógica da acumulação de fortunas pelos influenciadores digitais têm sido explorados com uma certa frequência por séries e filmes em tramas que oscilam entre a fantasia e uma incomoda verossimilhança. Spree é parte natural desse processo de assimilação da realidade da comunicação digital no nosso cotidiano pela ficção. O longa conta sua história de maneira engenhosa por intermédio do artifício que impulsiona sua temática, integrando nossos mecanismos de audiovisualizar o cotidiano (celulares, câmeras de segurança, players de YouTube) para contar a história de um influenciador digital frustrado que usa seu atual emprego de motorista de aplicativo para dar o seu “tiro de misericórdia” em busca de seguidores, likes e views: ele transmitirá em tempo real o assassinato de alguns dos seus passageiros.

Através de um protagonista que gradualmente se revela como um perigo para a sociedade, o longa escrito e dirigido por Eugene Kotlyarenko critica o vazio existencial e os efeitos psicológicos da perseguição por métricas na web. No entanto, o mais instigante desse longa, apontado por alguns como uma espécie de Psicopata Americano dos nossos tempos – e as comparações são bastante pertinentes já que, tal qual o personagem de Christian Bale no filme de 2000, temos contato com um protagonista de natureza doentia e que representa um perigo para a sociedade – é a maneira interessante como filme incorpora a lógica das múltiplas telas na construção da sua narrativa.

Imagens horizontais e verticais, multiplas perspectivas que dividem uma mesma tela representada por stories ou lives de Instagram, câmeras de segurança e perfis no Twitter ou rotas do aplicativo Spree que dá título ao filme, um similar do Uber, dá a Spree uma verve contemporânea de narrativa audiovisual, mas nenhum desses recursos soa como supérfluo. O longa de Eugene Kotlyarenko sabe, como poucos títulos que utilizaram esse recurso, se apropriar da gramática da realização e consumo de audiovisual na web para contar sua história de horror contemporâneo. Spree tem uma lógica engenhosa de montagem que sabe aproveitar cada uma dessas possibilidades de registro audiovisuais, tornando o aparato evidente e determinante para o comportamento dos seus personagens, que, claramente se transformam quando percebem a sua presença e que existe público para seus atos.

Spree

Conforme o protagonista Kurt Kunkle vai colocando em prática seu experimento online (e aquele apresentado em Nerve vai soando “fichinha” perto desse aqui), o ator Joe Keery conduz esse sujeito a um estágio incontrolável de loucura. O intérprete do Steve Harrington de Stranger Things tem um desempenho impressionante nesse filme lidando muito bem com a instabilidade emocional do protagonista, um sujeito despreparado para as negativas da vida, criado em um lar completamente disfuncional, e que, gradualmente, vai perdendo a sua humanidade e se tornando uma ameaça assustadora para as figuras que encontra pelo caminho. Nem mesmo o pai do protagonista interpretado por David Arquette escapa da loucura do digital influencer.

O tom de Spree é exageradamente elevado. Os passageiros de Kurt são figuras ausentes de qualquer simpatia, a maioria representa o que existe de pior na nossa sociedade (e na internet, claro). Assim como Kurt, todos agem como se estivessem entorpecidos pela fama online. O tom elevado é típico da sátira que Spree propõe. No entanto, vivemos em uma realidade no qual sátiras como esta e a tão afamada Black Mirror se aproximaram tanto da nossa sociedade que o que vemos é uma imagem espelhada e ela assusta. Spree sabe narrar muito bem esse conto de horror contemporâneo no limite entre a ironia, a crítica e o pavor que toda essa lógica de sociabilidade digital tem legado para nossa realidade.

Direção: Eugene Kotlyarenko

Elenco: Joe Keery, Sasheer Zamata, David Arquette, Mischa Barton, Kyle Mooney, Linas Phillips, Jessalyn Gilsig, Randy Vasquez

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