O lado mais “sério” da filmografia de Steven Spielberg poucas vezes me animou. Ao mesmo tempo em que ele foi capaz de criar verdadeiras obras-primas abordando temas contundentes em universos realistas, como A Lista de Schindler ou O Resgate do Soldado Ryan, o diretor concebe um filme aborrecido e verborrágico como Lincoln (conclusão que cheguei após uma revisão do longa, já que meu primeiro contato com ele foi bem amistoso) ou até mesmo Amistad. O Spielberg escapista sempre me pareceu mais sedutor e sem auto-censura, um cineasta que não condena as suas próprias inclinações com a emoção escancarada, o universo da infância e a imaginação sem limites. Particularmente, prefiro esse Spielberg que fez minha infância com a franquia Indiana Jones, Jurassic Park e E.T. – O Extraterrestre a versão mais “controlada” e sisuda do diretor. Ponte dos Espiões pertence ao grupo dos longas “sérios” da carreira do realizador, nos coroando com sua leitura sobre a Guerra Fria. Ainda bem que, mesmo que seja um Spielberg realista, Ponte dos Espiões é um longa que caminha na mesma linha de excelência de A Lista de Schindler e O Resgate do Soldado Ryan e evita os caminhos de Lincoln ou Amistad.
Ambientado na Guerra Fria, Ponte dos Espiões conta o caso verídico de um advogado que trabalhava com conflitos judiciais envolvendo seguros e foi convocado para defender um espião soviético preso pelo governo norte-americano. No decorrer do julgamento, o protagonista acaba sendo enviado para Berlim a fim de que possa negociar a libertação do espião em troca de um agente norte-americano capturado pelos soviéticos.
Ponte dos Espiões é um filme cujas ações ocorrem quase que em sua totalidade nas conversas e negociações de gabinete que são protagonizadas pelos seus personagens, algo bem parecido com o que Spielberg fez em Lincoln. Porém, curiosamente, Ponte dos Espiões evita a pomposidade do longa anterior do diretor e opta até mesmo por um certo bom humor para tornar a história fluida – nisso, a co-autoria do roteiro pelos irmãos Coen deve ter favorecido o filme. Spielberg consegue transpor para a tela o clima da Guerra Fria em suas paranóias, conversas sigilosas e a tensão acobertada pelo clima de uma falsa amistosidade.
É certo que ao inserir todas as ações do longa em ambientes fechados como escritórios, salas de audiência e gabinetes, Spielberg acaba fazendo com que seu filme não tenha tantos momentos visualmente icônicas como o restante da sua filmografia, que entre tantas referências visuais podemos listar a violenta sequência do ataque na praia de Omaha em O Resgate do Soldado Ryan ou a inesquecível bicicleta voadora em E.T. – O Extraterrestre, mas seria incoerente o realizador encher Ponte dos Espiões desses momentos, afinal estamos tratando de um período pós-Segunda Guerra Mundial marcado pela presença de conflitos e do receio de levá-los da “porta para fora”. A sobriedade e o cuidado com os excessos são fundamentais e revelam-se como escolhas acertadas do realizador.
À frente do seu filme, Spielberg conta com Tom Hanks que confere não apenas credibilidade ao protagonista mas também a empatia do público, já que seus propósitos, profissionais ou familiares, são compreensíveis e passíveis de admiração. Ponte dos Espiões conta ainda com a presença de um verdadeiro achado chamado Mark Rylance, ator que interpreta o espião soviético Rudolf Abel, peça central da negociação EUA e União Soviética mostrada no filme. Mark Rylance é responsável por uma composição meticulosa e muito interessante, transformando Rudolf Abel em um tipo peculiar, mas não uma caricatura através do seu jeito calmo, olhar pacífico e sua voz suave . Rylance já venceu prêmios importantes do teatro como o Olivier e o Tony, foi indicado ao Emmy por seu papel na minissérie Wolf Hall e tem chances de ser indicado ao Oscar por esse longa. Se ocorrer a nomeação, será bem merecido.
Nada burocrático ou aborrecido, Ponte dos Espiões é um filme que aborda questões históricas e políticas sérias sem esquecer do seu aspecto humano e, consequentemente, da sua conexão com o espectador. É claro que nos minutos finais do seu filme, Steven Spielberg não se esquece de sublinhar o esforço empreendido pelo seu protagonista, alçando-o a categoria de herói sem concessões. Não estaríamos falando de um filme de Steven Spielberg caso o longa não apresentasse este arco dramático. O que importa é que Ponte dos Espiões consegue ter consistência, coerência e logicidade interna, aspectos que não chegam a transformá-lo em mais uma obra-prima de Steven Spielberg (está difícil encontrá-la na filmografia recente do diretor), mas, pelo menos, em um excelente filme.