A mente infantil é mais sagaz do que parece. O público mais novo se mostra cada dia mais exigente e, consequentemente, cobra do mercado cinematográfico novidades em suas tramas. O público mais novo leva a indústria cinematográfica ao infindável processo de inovação e criação. Por isso, os estúdios têm tentado fazer coisas novas nos últimos tempos, em função dessa cobrança do consumidor jovem. Algumas vezes a “saída criativa” encontrada pelas produtoras para captar a atenção desses espectadores não dá muito certo – como foi o caso da terrível animação Emoji: O Filme (2017). Outras, a simples reinvenção de uma história é o suficiente para renovar uma franquia e retomar a atenção desse público – a exemplo de Bumblebee (2018) que conseguiu se desvincular dos fracassos recentes de Transformers e abriu um leque de oportunidades futuras para o universo dos autobots.
Existe ainda uma saída mais perigosa: a revisitação de uma narrativa. Seja através de uma releitura ou refilmagem, esse é um dos caminhos mais incertos quando se fala da criação de um produto comercial. O resultado é incerto, pode ser um sucesso estrondoso ou um fracasso completo. E é nessa categoria de reinvenção que o longa-metragem O Retorno de Mary Poppins, produzido pela Walt Disney Pictures, se encaixa. A sequência do musical clássico de 1964 teve a difícil missão de emplacar seu sucesso individual sem ser ofuscado pelo antecessor.
Anos após sua primeira aparição, Mary Poppins (Emily Blunt) surge para, mais uma vez, ajudar a família Banks. Agora, a babá encantada chega em meio ao caos na família, onde Michael Banks (Bem Whishaw) está a um passo da falência. Sua irmã, Jane (Emily Mortimer), tem feito de tudo para ajudá-lo desde que ele perdeu a esposa e passou a cuidar sozinho das crianças. Mary Poppins será o lampião de esperança na vida de Annabel (Pixie Davies), John (Nathanael Saleh) e Georgie (Joel Dawson) e os levará, ao lado do seu amigo Jack (Lin-Manuel Miranda), numa jornada repleta de magia e felicidade para que eles reencontrem os caminhos e ajudem a família nesse momento difícil.
Devido aos inúmeros louros do longa estrelado, na década de 1960, por Julie Andrews, a produção precisou achar o seu suporte em alguma coisa além da nostalgia para não se tornar uma réplica. Eis que a presença de Rob Marshall (Chicago, de 2002, e Caminhos da Floresta, de 2014) faz toda a diferença para a produção. O diretor, produtor e coreógrafo traz toda a sua experiência da Broadway para as suas obras cinematográficas. Unindo as duas artes, os resultados visuais de seus trabalhos são sempre impressionantes – até mesmo quando o filme não é um musical. Assim, Marshall traz à produção nostalgia, fantasia e teatralidade as quais servem de guia e pilar de sustentação para toda a narrativa.
Os problemas começam quando pensamos no roteiro. A premissa do filme está muito sustentada no passado. Não existe uma desvinculação real entre o primeiro longa e a sequência. David Magee (Em Busca da Terra do Nunca, de 2004), apesar de sua genialidade comprovada em outros trabalhos, seguiu um caminho ruim ao dar segmento a história da babá mais emblemático da literatura e do cinema. Seja por razões dos produtores ou estúdio, decalcar o argumento de Mary Poppins (1964) para criar a base de sua sequência foi uma escolha sofrível. O resultado é uma previsibilidade sem tamanho em cada um dos acontecimentos, além do mal uso de alguns personagens e situações – como Jane Banks e as questões da Grande Depressão.
A trilha sonora do longa é bem elaborada, mas segue a mesma estrutura do filme de 1964. As músicas compõem a mesma função narrativa sem se diferir muito na estrutura. Apesar disso, o compositor Marc Shaiman foi indicado na categoria de “Melhor Trilha Sonora” no Critics’ Choice Movie Awards e no Golden Globe Awards. Em contrapartida, a direção de Rob Marshall fará a diferença outra vez. Os números musicais são encantadores e passam a magia e alegria propostas pela película. A dinâmica teatralizada ao longo das performances consegue fazer com que o público esqueça dos defeitos da produção por alguns minutos.
A escolha do elenco é interessante. Emily Blunt, apesar de carregar uma responsabilidade absurda, consegue dar sua própria interpretação a personagem, se distanciando completamente de Andrews. O problema da Mary Poppins de Blunt é sua falta de destaque. Apesar de ser a personagem-título do longa, ela acabou sendo colocada de lado enquanto a personagem de Lin-Manuel Miranda acabou se tornando, ao lado das crianças, a peça fundamental da história. Do início ao fim da sessão, Jack será a persona que norteará os acontecimentos, ofuscando a presença de Poppins. Ambos receberam indicações por seus papeis em diversas premiações – dentre elas Critics’ Choice Movie Awards, Golden Globe Awards e Satellite Awards.
As crianças são adoráveis e cumprem o seu papel com a sinceridade de todo ator mirim que carrega o talento da interpretação. Seu deslumbramento nas cenas é tão real quanto o do público. Já os irmãos Banks se esforçam, porém não conseguem ter o melhor tempo de tela possível. Os dois são bons atores, mas não tiveram oportunidades cênicas para desenvolver uma performance memorável. Jane Banks, vivida por Emily Mortimer, por exemplo, tem o seu papel jogado fora por um mal aproveitamento do roteiro. Julie Walters, Colin Firth, Meryl Streep e Dick Van Dyke fazem aparições cuja única função é agradar pela presença. Walters carrega pequenas falas humorísticas que ajudam a descontrair quando são percebidas; Firth tem um papel fraquíssimo que faz a sua presença em cena ser insignificante; Meryl aparece para ser Meryl e agradar a todos apenas pela sua existência ilustre; e Van Dyke não passa de um agrado aos fãs do musical original por reverem o ator dançando por um breve momento.
Mary Poppins Returns (título original) carregou uma missão quase impossível de superar o seu antecessor e ser diferente dele. O resultado dessa tentativa de distanciamento e originalidade não é dos melhores, mas isso não tira o encanto do filme. A magia, felicidade e crença no impossível – as quais sempre foram a essência da história – seguem como norte da produção. Todo o encantamento das cenas musicais, canções e animações fazem a sessão valer a pena. É verdadeiramente leve e enriquecedor a maneira como a película recarrega o pensamento puro e infantil de que tudo na vida é possível quando se acredita. Marshall conseguiu, apesar de todos os percalços, trazer de volta a magia que reinventou os musicais há mais de 50 anos atrás.
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