Depois dos curtas A Voz Humana e Estranha Forma de Vida, o cineasta Pedro Almodóvar finalmente faz a sua estreia em longas de língua inglesa com O Quarto ao Lado, filme vencedor do prêmio de melhor longa no último Festival de Veneza. Desde que ganhou projeção internacional nos anos 1980, não foram poucas as tentativas de trazer Almodóvar para os EUA. A mais recente que se tem notícia foi durante a pré-produção de Julieta de 2016, que seria protagonizado por Meryl Streep, mas que, “de última hora”, acabou sendo convertido em uma produção espanhola protagonizada por Adriana Ugarte e Emma Suárez. Sempre que chegava o momento, o diretor alegava temer a barreira do idioma no set. As experiências nos curtas devem ter minimizado os temores do diretor e ele enfim traz para o público O Quarto do Lado.
Em O Quarto ao Lado, Almodóvar reúne Tilda Swinton, com quem havia trabalhado em A Voz Humana, e Julianne Moore na história de uma correspondente de guerra enferma por um câncer terminal (Swinton). Ciente dos seus últimos dias de vida, a personagem pede que uma amiga de longa data interpretada por Moore a acompanhe durante uma temporada em uma casa de campo onde pretende realizar um procedimento dar fim à própria vida.
Como Dor e Glória, O Quarto ao Ladotraz reflexões do cineasta sobre a finitude, a morte, ou melhor, a vida é o grande tema do mais recente trabalho de Almodóvar. Toda a ação do filme é concentrada nos diversos diálogos entre as personagens de Swinton e Moore, que assumem um protagonismo absoluto na tela, conversando sobre o passado, presente e futuro.
Por um ponto de vista mais óbvio, Almodóvar olha para Martha, personagem de Swinton, percebendo seus últimos prazeres e refletindo sobre erros e acertos em sua vida. Tentando sumariamente resolver todas as questões mal administradas em seu último suspiro. Inicialmente, a personagem Swinton é definida pelo temor para gradualmente ter um enfrentamento mais sereno da situação.
Do outro, e talvez mais interessante, há também o olhar do cineasta para Ingrid, personagem de Moore. A escritora vive a ansiosa expectativa pelo momento em que, enfim, Martha não estará mais entre os vivos. Ingrid é a forma que Almodóvar encontra para falar sobre nossa relação mal resolvida com a morte, ou seja, como por vezes não gostamos de falar sobre sua iminência ou sobre assuntos relacionados a ela.
O Quarto ao Lado é marcado por um roteiro que tem bastante sofisticação no tratamento do seu tema central. Almodóvar sabe elaborar um desenvolvimento complexo para a temática e conta com ótimas atrizes para conduzir tudo isso. É difícil ter algum “escorregão” nesse departamento quando se tem Tilda Swinton e Julianne Moore à frente do seu projeto. Ambas possuem uma sensibilidade ímpar e lidam com sentimentos delicados e não verbalizados ao longo da narrativa, sobretudo Moore que interpreta a espectadora da morte de alguém querido.
O problema é que O Quarto ao Lado causará estranhamento nos fãs mais ardorosos do cineasta e não é só pela língua falada. É o tipo de filme cuja resposta imediata após a sessão pode não fazer justiça ao seu resultado. É uma obra que precisa ser amadurecida intelectualmente pois surge como um ponto de mudança muito forte na filmografia do diretor. Recentemente, Almdóvar tem se aberto a reflexões existencialistas sobre o seu legado diante da velhice e da percepção da finitude (Dor e Glória) e até mesmo colocado o dedo na ferida sobre o atual cenário político (Mães Paralelas). O Quarto ao Lado me parece mais um movimento nesse sentido. Em uma cena tola, mas emblemática desse movimento, Almodóvar sinaliza como, nessas circunstâncias, seus personagens sequer têm tempo ou enxergam graça no humor malicioso e erótico que lhe era tão peculiar – refiro-me a uma cena entre a personagem de Moore e um personal trainer.
Em O Quarto ao Lado, a forma tão característica do diretor parece dissonante da sobriedade que é vista na tela. É um cineasta em conflito: aquilo que ele quer abordar (a melancolia dos últimos dias e o pessimismo com o estado das coisas no mundo) encontra os resquícios da sua vivacidade estética que, alumas vezes, resiste, mas na maior parte do tempo cede diante da gravidade das coisas. A artificialidade do mise en scène, o humor e as cores parecem não “conversar” muito bem com toda a melancolia vivenciada e representada tão bem pelas atuações de Swinton e Moore.
Talvez para quem seja fã do cinema do cineasta, encarar o diretor que será visto em O Quarto ao Lado pode parecer um choque. O mais recente trabalho de Almodóvar tem como ponto forte, para o bem e para o mal, todo o resultado dessas mudanças em cada fibra da sua trama. É um longa conflitante, muitas vezes, mais soturno do que a maior parte das obras do diretor. Em alguns momentos, essa mudança de perspectiva de Almodóvar é bem-vinda e resulta em insights de uma profundidade singular, em outros traz entraves para a própria apreciação da história contada e não parece tão harmonioso quanto o trabalho pregresso do realizador.
Em O Quarto ao Lado, Almodóvar traz personagens que não seguem por completo seus instintos, são mais contemplativos e melancólicos, estão paralisados diante do medo maior: a morte. Eles até percebem seus desejos como impulsos persistentes e procuram atendê-los em determinado momento. Porém, os instintos já não são mais percebidos como algo capaz de aplacar todas as insatisfações. O tom mais existencialista, a decepção com o mundo, alternada por uma fúria e melancolia por perceber que as coisas não terminaram como lutamos para que terminassem… Este é Almodóvar hoje e talvez leve um tempo para assimilarmos esse novo artista, que segue fiel a sua identidade, mas que está presente em um outro contexto do mundo e da sua própria jornada. Ainda não é um Almodóvar resolutivo da sua nova forma, mas em transformação, o que é instigante de ser analisado, mesmo que não resulte em um dos seus maiores filmes, comprovando que a língua é apenas um detalhe na sua realização como artista.
Direção: Pedro Almodóvar
Elenco: Tilda Swinton, Julianne Moore, John Turturro
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