O Livro dos Prazeres

Crítica: O Livro dos Prazeres

3.9

A prosa de Clarice Lispector é um desafio para qualquer cineasta que se arrisca adaptá-la para as telas. A autora possui obras de um existencialismo intenso que demandam habilidade na conversão para mídias audiovisuais. A diretora e roteirista Marcela Lordy mergulha nessa corajosa empreitada e é muito bem-sucedida com a versão para as telas de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, que na versão cinematográfica ganha o título de O Livro dos Prazeres apenas.

Com o roteiro escrito em co-autoria com Josefina Trotta, mexendo na medida do necessário na obra original de Lispector, afinal estamos falando de um romance que por mais transgressor que fosse na sua época foi pensado há mais de 50 anos atrás, O Livro dos Prazeres traz a história de Lóri, personagem assumida pela sempre radiante Simone Spoladore, para os nossos tempos. No longa, Lóri é uma professora infantil que se apaixona por um professor universitário de Filosofia, papel do argentino Javier Drolas, mas esbarra na sua própria dificuldade de se entregar a uma relação mais estável e íntima.

O Livro dos Prazeres de Marcela Lordy não tem pudores ao abordar de forma extremamente franca a sexualidade feminina. Tampouco de explorar a realização amorosa como uma possibilidade legítima para uma personagem tão transgressora e independente. Lóri opta por preencher sua vida com relações sexuais sem compromisso com desconhecidos e quando não encontra um parceiro, não tem pudores em recorrer à masturbação. Tudo isso é abordado sem condenações pela obra e vivenciado em plenitude pela protagonista. Acontece que a Lóri de O Livro dos Prazeres começa a passar por uma profunda crise existencial, se dando conta de que, naquele estágio da sua vida, isso talvez já não lhe satisfaça por completo ou que talvez precise de um novo componente para que a sua vida sexual volte a fazer sentido. A descoberta do amor de Ulisses acaba sendo um ponto desestabilizador para Lóri.

O Livro dos Prazeres

Marcela Lordy tem uma sensibilidade ímpar para captar a densidade da turbulência de pensamentos e sentimentos que tomam conta da sua protagonista, algo que poderia ser difícil de transpor para as telas. A diretora consegue isso sobretudo por valorizar os recursos dramáticos de sua protagonista, a atriz Simone Spoladore. Como Lóri, Spoladore interpreta uma mulher esquiva, que não gosta de aprofundar suas relações, parecendo estar sempre ausente nos ambientes e nas interações. É interessante que mesmo que Spoladore traga de maneira tão sobressalente esses traços da personagem, em momento algum ela afasta o público da protagonista de O Livro dos Prazeres, a atriz evita torná-la fria a ponto do espectador não conseguir se conectar com Lóri. Fica evidente desde o princípio que apesar de Lóri ser uma personagem tão transgressora, ela é marcada por diversos medos, sobretudo o de se machucar ao se entregar afetivamente, ainda mais que do outro lado da relação está um homem – e, bem, a história da humanidade depõe muito contra esse tipo de indivíduo.

Em tempos de soft porns que preenchem o tempo de um longa-metragem com um amontoado de cenas de sexo sem vida, O Livro dos Prazeres resolve muito bem esse pudor do cinema com a sexualidade das personagens ao conciliar o afetivo e o carnal no terceiro ato da jornada de Lóri. E mesmo antes dessa catarse final, quando vemos uma protagonista feminina se apresentar na tela para o público através da sua sexualidade com uma economia sensível de diálogos, o longa subverte uma lógica longeva nas narrativas audiovisuais de anular os desejos carnais de mulheres quando toda a história deve conduzir à realização amorosa, assim aprendemos que funciona uma comédia romântica, por exemplo. Amor e sexo parecem não se conciliar na nossa criação ocidental cristã, o cinema, como outros produtos culturais foi reflexo dessa mentalidade por anos. O Livro dos Prazeres desconstrói todos esses paradigmas ao mergulhar com propriedade na complexa teia de anseios da sua protagonista, alguém que, no final das contas, para ser quem se é, não anula seus prazeres ou seus afetos, mas os concilia.

Direção: Marcela Lordy

Elenco: Simone Spoladore, Javier Drolas, Felipe Rocha, Gabriel Stauffer, Leandra Leal

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