Crítica: O Filme da Minha Vida

Há no DNA de O Filme da Minha Vida, mais recente empreitada de Selton Mello como diretor e roteirista, ecos de um certo cinema italiano que busca dar conta da jornada de amadurecimento do seu protagonista atravessado ora pelo ato de realização cinematográfica, como é o caso dos devaneios de Guido Anselmi, personagem de Marcello Mastroianni em 8 1/2 de Federico Fellini, ora pela recepção, como ocorre com Totó, protagonista de Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore. Com o cinema de Tornatore, podemos afirmar que O Filme da Minha Vida guarda semelhanças ainda mais próximas já que o realizador italiano já demonstrou ter preferência por narrar ritos de passagem mais de uma vez nas telonas, em Cinema Paradiso, mas também em Malena, trazendo a jornada do seu protagonista para o contexto de uma cidadezinha do interior e todos os fatores que isso envolve. É com tais filiações que Selton Mello entrega O Filme da Minha Vida, um longa que está longe de corresponder ao escopo alcançado pelo seu trabalho anterior, O Palhaço, mas que cumpre a sua função e entrega algumas das mais belas imagens concebidas com o auxílio do sempre competente diretor de fotografia Walter Carvalho.

No caso de O Filme da Minha Vida, baseado no romance de Antonio Skármeta (também autor de O Carteiro e o Poeta), Um Pai de Filme, o cinema passa a ser objeto de constante referência da narrativa na medida em que Tony, um jovem professor de língua francesa do interior do Rio Grande do Sul, se forma para a vida adulta tendo a telona como objeto de contemplação e não como ofício. Por influência de seu pai, que certa feita lhe conta sua compreensão sobre a vida a partir daquilo que considera como o mais fascinante de uma narrativa cinematográfica, o protagonista do longa consegue realizar a passagem para a vida adulta e expurgar certas mágoas do passado, ainda que na maior parte da projeção essa figura paterna seja uma completa ausência.

Em O Filme da Minha Vida, Johnny Massaro vive esse personagem principal, um jovem filho de uma brasileira com um francês que sai do interior do sul do país para estudar na capital durante a década de 1960. Quando retorna para sua cidade natal descobre que seu pai simplesmente desaparecera sem dar satisfação para a sua família. Em meio à dúvida amorosa pelas irmãs Petra e Luna e os primeiros passos como professor de uma turma de pré-adolescentes, Tony começa a sentir falta da presença do pai nesse princípio da vida adulta. Mesmo encontrando apoio em um amigo da família, não há um só momento da vida de Tony que ele não se pergunte sobre o paradeiro do pai e as razões que fizeram com que ele sumisse sem deixar vestígios.

Diferente dos longas anteriores de Mello como realizador, Feliz Natal e, possivelmente, seu título mais popular, O Palhaço, há um outro tom e objetivo em O Filme da Minha Vida. Ainda assim, também podemos compreendê-lo como o resultado natural de um diretor que tem procurado uma coerência em sua filmografia com a manutenção de uma assinatura seja pelas temáticas que o perseguem seja pelo formato da história que narra. Há uma preocupação em O Filme da Minha Vida com um olhar para um núcleo familiar e com a memória, assim como havia em Feliz Natal, apesar do último ter um tom mais dramático. Em contrapartida, há, evidentemente, uma preocupação com um percurso traçado por um jovem personagem masculino, compreendendo sua própria identidade em formação ou amadurecimento ao longo da narrativa, em um olhar da câmera e uma direção que alterna doçura, melancolia e uma certa ingenuidade, como ocorria em O Palhaço.

Assim como Benjamin questionava se seguiria sua vida como palhaço, mirando a trajetória do seu pai vivido por Paulo José, em O Filme da Minha Vida, Tony lança questões sobre si próprio à sombra da ausência do pai interpretado por Vincent Cassel, como se a todo momento se perguntasse: “O que ele diria ou faria no meu lugar?”.  Nesse sentido, é curioso perceber como Mello tem desenhado sua carreira como diretor fascinado por temas e disposto a investir em olhares que demonstram constâncias e personalidade, mas também possibilidades de variação que levam o espectador a novas histórias e lugares sem perder de vista o conforto com o reconhecimento da sua assinatura como autor.

Em suas decisões narrativas e plásticas, o longa é marcado por sinais de uma história que quer nos remeter à memória. A fotografia composta pelo veterano Walter Carvalho nos guia através de um amarelado de imagem desgastada para vestígios de um passado mirado por seu jovem protagonista. Tony está sempre às voltas com as lembranças em preto e branco captadas pela lente da máquina  fotográfica de  Luna (Bruna Linzmeyer), assiste ao filme Rio Vermelho de 1948, dirigido por Howard Hawks, por influência de Paco (Selton Mello), melhor amigo do seu pai, cresce ouvindo transmissões de rádio numa época em que a TV começava a chegar na casa dos vizinhos… Em O Filme da Minha Vida, é como se Mello trouxesse em imagens e nos vestígios da direção e arte e da sua própria história elementos que sublinhassem  o fato de termos um protagonista que mira suas lembranças com saudade e num esforço de construir-se no presente para um futuro.

É também interessante notar no longa o trabalho de Mello com seus atores, não apenas na maneira como a câmera do diretor registra alguns de seus momentos chaves, mas no traço e no timing específico de comédia de alguns personagens, com suas investidas no humor sequenciadas por longos vazios e exercícios de reflexão sobre a existência que esses momentos de maneira insuspeita acabam suscitando. Isso ocorre em momentos momentos localizados do filme como acontecia em O Palhaço, por exemplo, desde uma passagem na qual Paco tira lições sobre a vida ao observar um grupo de porcos, até questões que ficam no ar quando Tony interage com Augusto, irmão de Luna (Linzmeyer) e um de seus alunos.

Em diversos momentos, Mello reserva longos close ups nos rostos de seus atores, chamando a atenção para àquele no qual testemunhamos a reação do personagem de Johnny Massaro àquilo que vê na tela em Rio Vermelho. Aliás, é preciso destacar o trabalho preciso e sensível do ator que de fato consegue delinear toda a jornada de amadurecimento de Tony, que vemos inseguro e tímido no início do longa e se transforma num sujeito mais extrovertido e confortável na própria pele conforme a narrativa avança. Por fim, é interessante notar como Mello trabalha com seu elenco infantil em momentos breves nesse longa. Encabeçado pela revelação João Prates, que vive o curioso Augusto, o grupo de meninos alunos de Tony faz com que a presença da ingenuidade infantil encontre eco na própria imaturidade do protagonista do filme, que, curiosamente, por seu posto na escola, acaba inspirando em alguns uma posição de referência masculina.

Como sublinha o personagem de Vincent Cassel ao seu filho no início e final de O Filme da Minha Vida, o mais bonito na jornada de Tony e no próprio longa é o entremeio, ou seja, o processo de mutação ao qual estamos sujeito como homens e mulheres em nossa vida e que passa inevitavelmente por inquietações provocadas pela imaturidade. Esse rito faz com que o sujeito que iniciou uma determinada história não seja o mesmo que a encerra. O Filme da Minha Vida é um longa sobre mudanças e as circunstâncias das mesmas, mas também uma narrativa sobre a autodescoberta de um rapaz conciliando-se com as dúvidas que tinha sobre o caráter de seu pai em um relato afetivo que bebe de tantas outras histórias que já tiveram a ficção como mediadora desses processos.

Tony, protagonista desse filme, entende a si e, de certa forma, o próprio cinema como a captura de um entre tantos processos de transformação que estamos sujeitos na vida, essa narrativa sem fim. O longa de Mello também é um relato sobre como é bonito olhar para trás e perceber essas transformações, sobretudo como não vemos as situações e pessoas como antes. O Filme da Minha Vida encerra sua história na tela percebendo as falhas dos seus personagens, que nem por isso deixam de ser admirados pelo seu diretor justamente porque são humanos e seguem sujeitos a transformações. Talvez esta seja a beleza do filme e do olhar de Mello para o mesmo.

Assista ao trailer do filme: