Cerca de três meses e meio depois do lançamento de Grande Sertão de Guel Arraes nos cinemas brasileiros, o mesmo público pode conferir outra adaptação de Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa para as telas. Desta vez, O Diabo na Rua no Meio do Redemunho é um projeto experimental da diretora Bia Lessa, mais conhecida pelo seu trabalho no teatro. O filme integra o projeto Mãos à Obra, cujo intuito não é só a experiência espectatorial do longa, mas também proporcionar paralelamente a suas exibições oficinas e outros formatos de encontro com a diretora e o elenco, eventos que serão gratuitos e circularão por algumas capitais brasileiras.
As semelhanças com a recente adaptação de Guel Arraes estão em apenas dois aspectos. O primeiro deles é que O Diabo na Rua no Meio do Redemunho também conta com Caio Blat e Luisa Arraes no elenco principal. Aqui, Caio Blat também interpreta o protagonista de Grande Sertão: Veredas, Riobaldo, o jagunço que serve a dois grupos rivais no sertão e que se apaixona por um sujeito enigmático chamado Diadorim. Na versão de Arraes, Luisa Arraes interpretou o jagunço que vira obsessão de Riobaldo, neste, a atriz se desdobra em vários papéis, incluindo uma versão de Riobaldo. Em O Diabo na Rua no Meio do Redemunho, Diadorim é vivido por Luiza Lemmertz, que não está no filme de Arraes.
A segunda semelhança entre as versões do texto de Guimarães Rosa levadas para as telas em 2024 é que ambas tem uma raiz no teatro. Arraes talvez preencha o seu filme de maiores artifícios audiovisuais, tendo feito ainda um deslocamento geográfico no cenário da história ao trazer Grande Sertão para os morros cariocas. Lessa preserva as paisagens do livro de Guimarães Rosa, mas também desenvolve um forte vínculo com o teatro.
Na verdade, com todo o seu projeto que extrapola a experiência espectatorial, Lessa encara O Diabo na Rua no Meio do Redemunho como algo que propõe transformações práticas no ofício. Além disso, pelo ponto de vista daquilo que será visto na tela, o filme é uma experiência mais extrema do que Dogville de Lars von Trier, por exemplo, a primeira referência que deve aparecer na cabeça do público mais cativo do cinema. Não há cenários, assim como também não há figurinos ou qualquer outro tipo de elemento no quadro, apenas os seus atores trajados de preto se revezando entre personagens no vazio de um grande espaço também negro. Muitas vezes, o elenco dá vida a elementos não humanos, como os animais do sertão (cabras, cavalos e pássaros) ou mesmo ondas e ventania.
O Diabo na Rua no Meio do Redemunho não é uma experiência que todo tipo de espectador deve aproveitar. As escolhas criativas de Lessa limitam a apreciação da audiência, sendo um filme provavelmente melhor aproveitado por profissionais das artes cênicas, sobretudo quem participará da experiência do projeto com as atividades que lhe são complementares. Para a plateia de forma geral, a preservação do caráter literário dos seus diálogos e seu vínculo com o modus operandi de uma montagem teatral pode proporcionar uma experiência relativamente cansativa.
O Diabo na Rua no Meio do Redemunho é propositivo no que tange a sua dramaturgia. Também pode ser lido como uma grande coreografia, na qual o esforço de Lessa e do seu elenco para sincronizar movimentos serve à transição de cenas, substitui recursos que em circunstâncias naturais não têm relação alguma com o corpo do ator ou mesmo compõem formas esteticamente calculadas em cada quadro. Assim, o que é digno de elogios é o trabalho aplicado de Bia Lessa com seus atores, um elenco que funciona muito bem como coletivo e que sustenta o peso de um texto tão difícil e cultuado com muita naturalidade servindo muito bem a proposta artística da diretora.
Direção: Bia Lessa
Elenco: Luiza Lemmertz, Luisa Arraes, Caio Blat
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