A despeito da aparência de sátira biográfica indicada em seus materiais de divulgação, O Aprendiz é um longa surpreendente na melhor acepção do termo. A crítica mordaz do diretor iraniano Ali Abbasi (do ótimo Holy Spider) é dirigida ao atual candidato à presidência dos EUA, e ex-presidente do país, Donald Trump, mas também àquilo que é o timoneiro da prática e interpretação dos processos políticos nos últimos anos: a filosofia reacionária da extrema direita.
Ao final de O Aprendiz, Trump, interpretado pelo impecável Sebastian Stan, dirige-se a um escritor, seu potencial biógrafo, e sintetiza sua política de ação no cenário público, entre as regras estão a ideia de que não existe uma verdade, a negação da derrota e a consideração de que qualquer voz divergente na arena pública deve ser belicosamente derrotada. Por trás da filosofia de Trump estão alguns dos principais venenos da atual sociedade, como a deslegitimação de instâncias científicas e jornalísticas, a negação da realidade e a minimização de qualquer preconceito (visto como mera “opinião”), o ambiente tóxico e “sem leis” das mídias sociais e o ataque virulento às expressões de crítica, como a arte.
Mais do que uma crítica a Trump, o “canhão” muito bem direcionado por Ali Abbasi está voltado para a extrema direita, ou seja, como a mesma forjou o atual cenário político que só beneficia líderes como o biografado e estratos sociais que atuam no seu entorno como parasitas, ambos usando o eleitor como massa de manobra. Dito isto, O Aprendiz é um trabalho excepcional.
Em O Aprendiz conhecemos Trump como um jovem empresário do ramo imobiliário fascinado pelas ideias do advogado Roy Cohn (o ótimo Jeremy Strong da série Succession). Trump contrata Cohn para resolver um imbróglio burocrático de sua família, mas a relação acaba se estreitando na medida em que o advogado vira o seu mentor. Conforme Trump vai enriquecendo e ficando ainda mais ganancioso, egocêntrico e frio a vínculos afetivos com sua esposa, pais e irmãos, o espectador acaba se dando conta de que a criatura “engoliu” o próprio criador. Afinal, também acompanhamos a derrocada de Cohn a partir do momento em que ele descobre ser portador do vírus HIV e é ignorado pelo seu antigo círculo social, inclusive Trump.
De todos os pontos da biografia de Donald Trump, Abbasi e o roteirista Gabriel Sherman assumem como foco a relação entre o empresário e seu mentor. No fim das contas, o filme traz a jornada formadora de uma mentalidade presente na política atual. À primeira vista, o longa de Abbasi pode parecer superficial na maneira como evita “psicologizar” a contrução da personalidade de Trump, mas como o próprio protagonista diz na cena final de O Aprendiz, é muito pouco produtivo entender as razões que levaram o empresário a ser o que ele é quando o que esteve em jogo sempre foi sua sede pelo poder. O que interessa ao filme de Abbasi é a filosofia desse protagonista e como ela é o rolo compressor que tem oprimido o mundo nos últimos anos. Abbasi não quer “entender” Trump, mas como o modus operandi daquele sujeito foi germinado e quais são as razões práticas da sua ação. Nesse sentido, vai direto ao ponto e não se perde no esforço de fazer uma biografia que dê conta de toda uma trajetória do seu protagonista, concentrando-se em fatos e relações que são determinantes para compreendermos as ideias daquele sujeito e como elas se manifestam na prática.
A atuação de Sebastian Stan como Donald Trump é primorosa. Em um filme marcado pela ironia e pela crítica corrosiva, o ator demonstra inteligência na sua composição ao encontrar o equilíbrio entre a imitação dos trejeitos de Trump sem soar caricato. Um dos grandes acertos do ator e do direcionamento que Abbasi dá a sua interpretação é revelação gradual do Trump que conhecemos hoje. No início do filme, não há sequer vestígio da figura midiática do empresário e político, apenas uma expressão facial aqui ou um gesto ali. Conforme Trump rompe seus laços com Kohn, Stan aproxima-se da versão notória do personagem, elevando o tom da performance, oscilando entre o lado soturno e o ridículo daquele sujeito. No entanto, o ator faz isso com muita consciência do projeto no qual está inserido, evitando a todo custo transformar aquele projeto em uma comédia. Sem dúvida, é um dos melhores trabalhos da carreira de Sebastian Stan, um ator que vem sendo muito requisitado nos últimos anos e tem tudo para ter uma das carreiras mais interessantes entre seus contemporâneos.
A estética televisiva oitentista da imagem de O Aprendiz também é um outro ponto muito interessante das escolhas desse filme. A tela quadrada e a câmera que flerta com a abordagem de um mocumentário traz mais credibilidade para a ambientação da época retratada na história e enfatiza o ridículo de muitas ações de Trump ou Kohn.
O grau de comprometimento de Ali Abbasi com a coesão da sua proposta, percebido em decisões na interpretação do seu elenco a elementos visuais do seu filme, fazem de O Aprendiz mais um acerto em sua carreira. O longa vai além do propósito de ser a cinebiografia de uma personalidade. O protagonista de O Aprendiz é Donald Trump, mas não apenas ele, e sim a retórica que atualmente ameaça a democracia e qualquer noção de civilidade e que encontra guarida nas inseguranças, frustrações e preconceitos de parcela da população. É um filme que escancara as vias pelas quais um modus operandi político foi moldado e culminou na arena pública do século XXI.
Direção: Ali Abbasi
Elenco: Sebastian Stan, Jeremy Strong, Maria Bakalova
Assista ao trailer!