Marte Um

Crítica: Marte Um

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Marte Um tem início na noite da vitória de Jair Bolsonaro nas urnas em 2018. A explosão de fogos e os gritos de comemoração daquela noite irrompem na tela ao mesmo tempo em que vemos o garoto Deivinho olhar para o céu e enxergar nele algo além das manifestações efusivas das pessoas, o menino nutre o sonho de participar do projeto Marte Um cujo objetivo é instalar uma colônia humana no planeta em 2030. O projeto aspirado por Deivinho também dá nome ao filme de Gabriel Martins, trata-se de uma história sobre a importância de se nutrir sonhos, dar possibilidade para as pessoas realizá-los e, consequentemente, se afirmarem enquanto cidadãos.

O longa de Gabriel Martins (o mesmo responsável por No Coração do Mundo e O Nó do Diabo) tem como protagonista a família do garoto Deivinho. A mãe trabalha como diarista e o pai como zelador de um condomínio de classe média. A irmã mais velha do menino cursa Direito na universidade pública e é a primeira geração da sua família a vislumbrar perspectivas diferentes de vida. A eleição do atual governo representa uma verdadeira ameaça sobretudo para a geração de Deivinho e, não por acaso, o garoto assimila o tempo todo os movimentos sutis de transformação do seu contexto.

Marte Um é mais um projeto exitoso da produtora mineira Filmes de Plástico. Reflexo do seu tempo e do desejo de muitos artistas expressarem suas angústias e ideias sobre o cenário político deflagrado pela ascensão de uma extrema direita no país, o longa entretanto opta por uma chave diferente de comunicação. A realidade atual está ali, mas Martins prefere deixar que a dinâmica familiar e algumas mudanças sensíveis que irrompem no âmbito privado deem o recado.

Marte Um

O núcleo familiar é destaque na história. Martins dirige atores maravilhosos, que parecem já chegar prontos no set, naturais, espontâneos, eles são os personagens, não exibem nenhum vestígio de artificialidade na composição daquelas figuras extremamente humanas. O elenco confere aos protagonistas da história uma humanidade que permite que tenhamos empatia por todos. Rejane Faria e Carlos Francisco fazem o casal Tércia e Wellington com tanta naturalidade e dignidade, manifestando um amor pelos filhos tão grande que é capaz de superar atritos geracionais e transformar suas perspectivas de mundo a partir da experiência dos mais novos. Ao mesmo tempo, Camilla Damião conduz muito bem o ponto de mudança representado por Eunice, filha mais velha do casal, e Cícero Lucas é uma revelação como o garoto Deivinho. Como Deivinho, Lucas compõe um menino intuitivo, sincero, prestativo, amoroso, companheiro e ingênuo, enfim, a síntese da afabilidade de Marte Um com o público.

Por meio do trabalho do elenco e da direção de Martins, vemos na tela pessoas boas que se amam, mas têm falhas, se arrependem e estão dispostos a aprender – os pais com os filhos e os filhos com os pais – e são companheiros uns dos outros, funcionam bem como grupo de afeto e suporte, mas também vivem suas jornadas individuais (Deivinho e seu sonho de viver em Marte, Eunice e a vivência da sua sexualidade, Wellington e o alcoolismo, Tércia e suas intuições). E é nessa dinâmica de observação do cotidiano daquelas personagens que Gabriel Martins conduz um filme no qual a ternura parece ser a resposta para enfrentar um momento tão difícil no país como o que temos passado nos últimos anos, onde uma geração viu seus planos de futuro desmoronarem pelo desmantelamento das instituições e das condições básicas de vida. No final das contas, aquilo que Wellington responde ao filho diante da incerteza do garoto de realizar o sonho de ser astronauta, “a gente dá um jeito” sempre foi o “manual de sobrevivência” do brasileiro diante de uma história cíclica de crises morais.

É comum que o cinema, como qualquer produto cultural, contemple no seu espectro discursivo traços da realidade do seu tempo. Assim, não é difícil compreender porque nossa cinematografia nos últimos anos tem sido marcada por tantas obras com tom de denúncia, muitas vezes dominadas pelo pessimismo, o tom mais grave de tragédia instaurada – só em 2022, tivemos o lançamento de dois longas explosivos nesse sentido, Carro Rei e A Casa de Antiguidades. No entanto, olhando para a mesma conjuntura social, Marte Um opta por oferecer algum tipo de alento ao espectador diante da falta de esperança que nos assombra. Precisamos da crítica enérgica, mas o momento também pede que a gente se abrace, se dê conforto e traga de volta nossa força e a legitimidade de sonhar. Marte Um é o filme que faz isso por nós.

Direção: Gabriel Martins

Elenco: Cícero Lucas, Carlos Francisco, Camilla Damião

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