Mais Pesado é o Céu

Crítica: Mais Pesado é o Céu

3.5

Mais Pesado é o Céu é um cinema singular que provoca aquilo que, particularmente, os filmes deveriam proporcionar com mais frequência nas plateias. É o tipo de narrativa que extrapola a tela e que apresenta lacunas interpretativas que somente o público pode preencher após a sensação, provoca conversas. E isso não é simplesmente retórica para convencer o público dos méritos do mais recente trabalho do cearense Petrus Cariry. Mais Pesado é o Céu não é aquele tipo de projeto que esconde um discurso vazio através de um aproach hermético de “cinema de arte”, seja lá o que isso venha significar. O mais recente longa de Cariry é pura linguagem, que provoca o espectador a pensar a respeito do significado de tudo aquilo que assistiu ao longo das suas quase duas horas de duração.

Na história, acompanhamos a trajetória de dois personagens que se encontram no interior do Ceará. Antonio (Matheus Nachtergaele) assume qualquer tipo de serviço desde que chegou do sudeste do país. Os planos do personagem agora é trabalhar como catador de caranguejo em um mangue depois de ouvir de alguns conhecidos que esse tipo de atividade tem sido bem promissora. Já Teresa (Ana Luiza Rios) está sem eira nem beira depois que sua cidade foi invadida por um açude. Os personagens encontram um bebê abandonado e decidem se responsabilizar pela criança.

A partir da jornada de Antonio e Teresa, Petrus Cariry tem muito a dizer sobre as divergentes vivências de homens e mulheres na realidade mais dura do Brasil, mas também sobre as expectativas construídas pelo público para histórias como as que esses personagens ensaiam. De um lado, Cariry apresenta Antonio e sua esperança de formar com Teresa e o “menino” Miguel uma família, uma utopia romântica que faz com que o personagem esqueça até mesmo de suas metas mais pragmáticas de vida e revele uma inércia diante de situações nas quais poderia intervir de alguma forma. É como se aquela ideia de formação familiar tradicional inspirada pela convivência com Teresa e Miguel entorpecesse o personagem e o fizesse fugir de uma realidade.  Do outro lado, com o mesmo propósito de cuidar daquela criança que “cai de paraquedas” em sua vida, Teresa se vira como pode, sai de casa todo dia em busca de um emprego e se arrisca fazendo alguns programas para “colocar comida dentro de casa”.

A oposição entre os protagonistas é uma grande provocação de Cariry a preconceitos estruturais e eventuais julgamentos da plateia sobre as reações de um ou de outro, quais são os desejos femininos e masculinos contextualizados pela realidade mais escassa que nosso país pode oferecer? Como se manifestam os sonhos desses personagens e como cada um deles lida com um contexto que a cada segundo inviabiliza a concretização dos mesmos?

Mais Pesado é o Céu

A PARTIR DAQUI, SPOILERS.

Mais Pesado é o Céu também provoca seu espectador quando induz a plateia ao desejo de um “final feliz” na história de Antonio e Teresa. Assim como o personagem de Nachtergaele, o público pode eventualmente torcer para que em algum momento daquela história os protagonistas construam uma família e encontrem uma forma de criar o bebê Miguel juntos. No entanto, o que o filme oferece sobretudo no seu último ato é um rompimento brusco com esse desfecho clássico hollywoodiano e patriarcal. Olhando diretamente para a câmera, o personagem de Matheus Nachtergaele tem enfim uma reação, ela é a mais violenta que podemos imaginar e frisa como, para aquela realidade, um final mais esperançoso para Antonio e Teresa parece inviável – sendo algo, inclusive, evidente desde o princípio, apesar do filme recorrer a artifícios do melodrama que, de forma muito inteligente, despistam o público do óbvio.

O filme também conta com o benefício de ter duas fortes interpretações em grande destaque. Matheus Nachtergaele sabe conduzir de forma dúbia a docilidade de Antonio, revelando posteriormente que esta na verdade pode ser entendida como uma passividade ou alienação da realidade no seu entorno fruto do seu lugar na sociedade como um homem. Ana Luiza Rios também tem grandes momentos no longa como Teresa, construindo um arco dramático extremamente delicado e duro de ser atravessado por sua personagem e a atriz faz isso com muita sensibilidade. A oposição de experiências entre os personagens escancara como as vivências femininas são distintas das masculinas. A princípio, Antonio se coloca como o polo provedor, mais sábio e experiente da relação, para depois o público constatar que é Teresa quem tem as rédeas da realidade de fato, empreendendo uma trajetória dura e cruel de amadurecimento, independência e preparação para a vida.

Mais Pesado é o Céu dá indícios de dialogar com um cinema brasileiro sobre o sertão do início dos anos 2000 que, através do melodrama, encontrava alguma beleza ou esperança na trajetória de personagens que viviam uma realidade extremamente sofrida e que fora até denominado de “cosmética da fome” naquele período por acadêmicos renomados. A captura das belezas naturais do Ceará pela direção de fotografia exuberante de Petrus Cariry e o registro de uma convivência domiciliar do casal de protagonistas mediada pelas preocupações com uma criança geram um contraste proposital com as intenções do cineasta de chacoalhar as expectativas do público com um registro mais solar daquela realidade.

Cariry desmonta as ilusões não só do seu protagonista masculino, Antonio, mas também do público: enquanto o país não se livrar de alguns problemas sociais bem sérios, qualquer “final feliz” é inviável naquele contexto.  Mais Pesado é o Céu quebra essa tradição de forma muito sofisticada, usando com muita inteligência uma abordagem que procura o tensionamento, a contradição, a quebra de expectativas. É um acerto e tanto.

Direção: Petrus Cariry

Elenco: Matheus Nachtergaele, Ana Luiza Rios, Silvia Buarque

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